Após um intervalo forçado, retomemos o propósito enunciado no texto (I), isto é, analisarmos algumas partes do "Que Fazer?", com o objectivo de as utilizarmos como ferramenta interpretativa de situações e "teorias" da actualidade.
Como dizíamos, com o cuidado atento de procurar ler a sua obra em correlação permanente com a marcha dos acontecimentos da sua época - acontecimentos e situações que ele visava interpretar/influir/dirigir - todos os seus escritos contêm ensinamentos e, simultâneamente, todos evidenciam o seu método rigoroso, polémico, dialéctico, frontal, que tanto nos estimula e atrai para o seu estudo e aplicação no presente.
Daqui resultam a justificação e o objectivo deste texto (II). Transcrevem-se períodos desta sua obra, intercalando-os com apontamentos sobre a sua possível aplicação ao nosso tempo presente. Recomecemos, então:
"De facto, não constitui mistério para ninguém que, na social-democracia internacional de hoje, se tenham formado duas tendências, cuja luta ora “se anima e se inflama, ora se extingue sob as cinzas das grandiosas resoluções de tréguas”. Em que consiste a “nova tendência que "critica” o "velho” marxismo "dogmático", disse-o Bernstein, e demonstrou-o Millerand com suficiente clareza. A social-democracia deve transformar-se de partido da revolução social em partido democrático de reformas sociais. Essa reivindicação política, foi cercada por Bernstein com toda uma bateria de "novos" argumentos e considerações muito harmoniosamente orquestrados. Nega ele a possibilidade de se conferir fundamento científico ao socialismo e de se provar, do ponto de vista da concepção materialista da história, sua necessidade e sua inevitabilidade, nega a miséria crescente, a proletarização e o agravamento das contradições capitalistas; declara inconsistente a própria concepção do "objetivo final", e rejeita categoricamente a ideia da ditadura do proletariado; nega a oposição de princípios entre o liberalismo e o socialismo, nega a teoria da luta de classes, considerando-a inaplicável a uma sociedade estritamente democrática, administrada segundo a vontade da maioria, etc.
Assim, a exigência de uma mudança decisiva - da social-democracia revolucionária para o reformismo social burguês - foi acompanhada de reviravolta não menos decisiva em direcção à crítica burguesa de todas as ideias fundamentais do marxismo. E como essa crítica, de há muito, era dirigida contra o marxismo do alto da tribuna política e da cátedra universitária, em uma quantidade de publicações e em uma série de tratados científicos: como, há dezenas de anos, era inculcada sistematicamente à jovem geração das classes instruídas, não é de se surpreender que a "nova” tendência "crítica” na social-democracia tenha surgido repentinamente sob sua forma definitiva, tal como Minerva da cabeça de Júpiter. Em seu conteúdo, essa tendência não teve de se desenvolver e de se formar; foi transplantada directamente da literatura burguesa para a literatura socialista."(...)
Sabemos, claro, que algumas designações usadas por Lénine devem ser por nós transpostas para as que actualmente utilizamos. Exemplo disto é a designação "social-democrata", que hoje significa comunista. Mas, corrigidos estes pormenores, a leitura deste período de uma obra de Lénine escrita há mais de um século surge-nos hoje espantosamente actual! Se procedermos à substituição dos nomes de alguns dos actores, substituindo-os pelos nomes "correspondentes" da actualidade, a sua análise parece-nos escrita hoje, caracterizando as nossas próprias realidades políticas. Constitui um bom exemplo da genialidade política de Lénine.
Devidamente contextualizado, este trecho tem plena aplicação ao panorama actual dos partidos comunistas, defrontando correntes reformistas externas e também internas. E isto conduz-nos a duas conclusões simples: a primeira, que não é a marcha do tempo e a acumulação de novas experiências e conhecimentos - próprios e alheios - que torna hoje os partidos que se reclamam operários imunes aos fenómenos oportunistas; a segunda conclusão, eventualmente mais dolorosa de enfrentarmos, que também no interior dos partidos o embate político e ideológico está presente, revelando-nos que a luta de classes não fica lá fora, à entrada das nossas portas. Frequentemente, encontramos camaradas com uma concepção falsa - idealista, afinal - sobre os partidos comunistas, aliás explicável pela necessidade constante de preservarmos a nossa unidade e a nossa coesão, razão essencial da força dos partidos "de novo tipo", apresentando a imagem de um partido sólido, coerente, convicto. Uma imagem que, ela própria, seja um factor importante para coesionar e mobilizar a classe e as massas populares na luta que travamos. De tanto defendermos a unidade do partido, somos nós próprios conduzidos à falsa noção de um unanimidade que, mal-grado os nossos desejos e aspirações, não corresponde à realidade.
O combate, tantas vezes áspero e renhido, travado durante os últimos anos - já décadas -, para afirmar a justa concepção de um partido marxista-leninista, contra aqueles que tudo fizeram para o descaracterizar e mesmo destruir, aí estão a confirmar que as batalhas que Lénine no seu tempo teve que travar contra as correntes oportunistas voltam e retornam sempre, assumindo novos formatos e "teorias" mas igualmente visando a liquidação das nossas características essenciais. Outros partidos comunistas - são disto exemplos o espanhol, o francês, o italiano, entre outros - omitindo o trabalho teórico, desprezando a necessidade de um activo e constante combate às teses oportunistas, deixando durante anos e anos que tais ideias fossem medrando no seu seio, "dissolvidos" internamente pela acção dos "reformadores", acabaram totalmente destruídos e hoje deles já nada resta, daqueles que no passado foram grandes partidos operários europeus.
Na luta das ideias, a acção anti-partido das concepções oportunistas é um fenómeno inevitável e intemporal, inerente ao capitalismo e ao seu sistema ideológico dominante. Assim, robustece-nos mais esta ideia da sua objectiva inevitabilidade , permitindo-nos dar-lhe as respostas a cada momento necessárias e adequadas, do que adoptarmos uma concepção idealista do partido, recusando ver os confrontos de ideias que ocorrem - e ocorrerão sempre - no seu seio. A luta de classes está presente em todas as actividades humanas. Entre nós de modo bastante amortecido - felizmente - mas também se manifesta.
(...)"Millerand deu um exemplo brilhante desse bernsteinismo prático; também, com que empenho Bernstein e Volimar apressaram-se em defender e louvar Millerand! De fato, se a social-democracia não constitui, no fundo, senão um partido de reformas e deve ter a coragem de reconhecê-lo abertamente, o socialismo não somente tem o direito de entrar em um ministério burguês, como também deve mesmo aspirar sempre a isso. Se a democracia significa, no fundo, a supressão da dominação de classe, por que um ministro socialista não seduziria o mundo burguês com discursos sobre a colaboração das classes? Por que não conservaria ele sua pasta, mesmo após os assassínios de operários por policiais terem demonstrado pela centésima e pela milésima vez o verdadeiro carácter da colaboração democrática das classes? Por que não facilitaria pessoalmente o czar a quem os socialistas franceses não chamavam senão de knouteur, pendeur et déportateur? E para contrabalançar esse interminável aviltamento e auto-flagelação do socialismo perante o mundo inteiro, essa perversão da consciência socialista das massas operárias - única base que nos pode assegurar a vitória -, são-nos oferecidos os projectos grandiloquentes de reformas insignificantes, insignificantes ao ponto de se poder ter obtido mais dos governos burgueses! Aqueles que não fecham os olhos, deliberadamente, não podem deixar de ver que a nova tendência “crítica” no socialismo nada mais é que uma nova variedade do oportunismo."(...)
A obra leninista é esta magnífica claridade de pensamento, este enfrentamento do real sem titubear, esta exemplar capacidade de discernir campos, explicar os seus significados e, pela polémica profundamente dialéctica, buscar a linha de orientação certa.
Em Portugal, é costume dizermos que, se o quiséssemos, há muito que integraríamos os sucessivos governos. Para tal, bastava-nos (!?) aceitar as políticas falsamente chamadas de "unidade das esquerdas", de "conciliação" dos interesses ditos nacionais, mas de facto ao serviço do grande capital e da conciliação de classes. Há mais de três décadas no lado da resistência e da luta contra a política de direita, ao lado dos trabalhadores e do povo, o PCP soube rejeitar firmemente os "cantos de sereia" que, vindos constante e insidiosamente do exterior, encontraram dentro do partido quem as advogasse. Tal como o texto leninista transcrito acima, também não nos "faltaram" os candidatos a ocupantes de ministérios e/ou secretarias de estado e sempre - é muito importante sublinhá-lo! - apresentando argumentos "de esquerda", anunciados tendo por esteio a necessidade de nos "modernizarmos", de sermos actuais e não fossilizados, abertos às "mudanças em curso no mundo". Pois é: por aqueles que, como Gorbachev nos seus tempos áureos, sempre afirmavam ser indispensável "renovar" o partido para sermos ainda mais verdadeiramente comunistas. Foram rechaçados, desistiram cá dentro de terem o acesso às mordomias que ambicionavam, alguns foram obtê-las ingressando nas formações políticas - PS e PSD - de facto as indicadas para eles. Mas, atenção: este fenómeno não foi definitivamente extirpado do tecido político do partido, das suas organizações. O que nos reclama prosseguirmos com atenção uma cuidada política de quadros.
(...)"Pequeno grupo compacto, seguimos por uma estrada escarpada e difícil, segurando-nos fortemente pela mão. De todos os lados, estamos cercados de inimigos, e é preciso marchar quase constantemente debaixo de fogo. Estamos unidos por uma decisão livremente tomada, precisamente a fim de combater o inimigo e não cair no pântano ao lado, cujos habitantes desde o início nos culpam de termos formado um grupo à parte, e preferido o caminho da luta ao caminho da conciliação. Alguns dos nossos gritam:' Vamos para o pântano!' E quando lhes mostramos a vergonha de tal ato, replicam:'Como vocês são atrasados! Não se envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir um caminho melhor!' Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso, larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também nós somos “livres” para ir aonde nos aprouver, livres para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem!"(...)
Este período escrito por Lénine, já um "clássico" das suas citações, fala por si. Revela a dureza do percurso de um partido de princípios e de fidelidade aos trabalhadores e a necessidade da permanente rejeição daqueles que gostariam de nos ver, como eles, no "pântano". Vejamos o que o autor nos diz em seguida, de novo uma espantosa descrição das realidades da sua época e que nos surge quase premonitória, tão bem ela se aplica aos tempos actuais e nas várias latitudes.
(...)"As manifestações do actual oportunismo internacional, em toda a parte idêntico em seu conteúdo social e político, variam segundo as particularidades nacionais. Em um país, os oportunistas há muito agrupam-se sob uma bandeira distinta; em outro, desdenhando a teoria, seguem praticamente a política dos socialistas radicais; em um terceiro, alguns membros do partido revolucionário, que se passaram para o campo do oportunismo, desejam atingir os seus fins, não através de luta aberta por princípios e tácticas novas, mas através de corrupção gradual, imperceptível e, se é que se pode dizer, não passível de punição pelo seu partido; enfim, em outro lugar, esses desertores empregam os mesmos procedimentos nas trevas da escravatura política, onde a relação entre a actividade "legal" e a actividade "ilegal", etc., é completamente original. Fazer da liberdade de crítica e da liberdade do bernsteinismo a condição da união dos sociais democratas russos, sem uma análise das manifestações concretas e dos resultados particulares do bernsteinismo russo, é falar sem nada dizer."(...)
O período a seguir justifica a sua transcrição pela relevância do problema que trata, isto é, as alianças, a indispensabilidade de uma política de alianças para o proletariado e para o seu partido, e, conexa, a questão do seu justo entendimento e da sua prática correcta.
(...)"Evidentemente, a ruptura não se deve ao fato de os "aliados” se terem declarado democratas burgueses. Ao contrário, os representantes dessa última tendência constituem, para a social-democracia, aliados naturais e desejáveis, sempre que se trate de tarefas democráticas que a situação actual da Rússia coloca em primeiro plano. Mas, a condição necessária para tal aliança, é que os socialistas tenham a plena possibilidade de revelar à classe operária a oposição hostil entre os seus interesses e os da burguesia. Ora, o bernsteinismo e a tendência "crítica" a que aderiram, em geral, os marxistas legais, em sua maioria, removiam essa possibilidade e pervertiam a consciência socialista, aviltando o marxismo, pregando a teoria da atenuação dos antagonismos sociais, proclamando absurda a ideia da revolução social e da ditadura do proletariado, reconduzindo o movimento operário e a luta de classes a um sindicalismo estreito e à luta "realista” por reformas pequenas e graduais. Isso equivalia perfeitamente à negação, para a democracia burguesa, do direito do socialismo à independência e, por conseguinte, de seu direito à existência; e, na prática, tendia a transformar o movimento operário, então em seus primórdios, em apêndice do movimento liberal."(...)
Em prejuízo do desenvolvimento das lutas que podem conduzir a avanços reais na transformação da actual correlação de forças em diversos teatros nacionais, esta tendência oportunista de ocultação/diluição dos ideais, do programa e dos objectivos centrais, da própria razão da sua existência, marca negativamente a prática política de numerosos partidos que se afirmam comunistas, conduzindo-os predominantemente para os terrenos institucionais, em prejuízo da sua presença e da sua actuação, activa e constante, junto dos trabalhadores e das massas populares.
Na sequência, observemos o que Lénine escreveu sobre o dessoramento ideológico, sobre a penetração do ecletismo e da ignorância dos princípios no pensamento e na vida do partido. Vale a pena chamar a atenção para a terminologia utilizada pela corrente oportunista da sua época, tão grande a semelhança com designações da actualidade, e, como um aparente apelo à liberdade de crítica mascara afinal o real desinteresse dos oportunistas pela teoria, rejeitando a necessidade do desenvolvimento teórico do partido, desenvolvimento da teoria que permite fortalecer, a cada momento, a actividade partidária.
(...)" 'O dogmatismo', o 'doutrinarismo', 'a fossilização do Partido, castigo inevitável do estrangulamento forçado do pensamento', tais são os inimigos contra os quais entram na arena os campeões da "liberdade de crítica" do Rabótcheie Dielo. Apreciamos que esta questão tenha sido colocada na ordem do dia; apenas proporíamos completá-la com esta outra questão: Mas, quem são os juízes?"(...)"Vê-se assim, portanto, que as grandes frases contra a fossilização do pensamento, etc., dissimulam o desinteresse e a impotência para fazer progredir o pensamento teórico. O exemplo dos sociais democratas russos ilustra, de uma forma particularmente notável, esse fenómeno comum à Europa (e de há muito assinalado pelos marxistas alemães), de que a famosa liberdade de crítica não significa a substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade com respeito a todo sistema coerente e reflectido; significa o ecletismo e a ausência de princípios."(...)
E ainda neste plano da actividade teórica do partido e as manifestações oportunistas, o período seguinte pode ser-nos muito útil e oportuno, ao colocar-nos de sobreaviso quanto ao pensamento real de muitos indivíduos que se reclamam marxistas; escrevem com frequência sobre temas políticos, usam uma linguagem aparentemente de esquerda e utilizam citações dos clássicos como suporte para as suas ideias, mas afinal tripudiam o seu significado e violam o pensamento real dos clássicos. Curiosamente, com citações de Marx, já Lénine discutia no seu tempo o carácter ilegítimo de tais citações. Assenta como uma luva em muitos teóricos de grande notoriedade nos tempos presentes! Apreciem:
(...)" 'Cada passo avante, cada progresso real valem mais que uma dúzia de programas'. Repetir tais palavras nesta época de dissensão teórica equivale a dizer à vista de um cortejo fúnebre: "Tomara que sempre tenham algo para levar!" Além disso, essas palavras são extraídas da carta sobre o programa de Gotha, na qual Marx condena categoricamente o ecletismo no enunciado dos princípios. 'Se a união é verdadeiramente necessária', escrevia Marx aos dirigentes do partido, 'façam acordos para realizar os objectivos práticos do movimento, mas não cheguem ao ponto de fazer comércio dos princípios, nem façam "concessões" teóricas'. Tal era o pensamento de Marx, e eis que há entre nós pessoas que, em seu nome, procuram diminuir a importância da teoria!"(...)
Já vai longo este post e é tempo de o fechar. Terei que deixar para mais uma nova postagem a selecção restante sobre o que Lénine nos deixou no seu escrito "Que Fazer? (as questões palpitantes do nosso movimento)". Nele tratou da construção do partido, numa sua fase ainda enbrionária, constitutiva, mas os problemas que trata continuam ainda hoje actuais, constituindo preciosos ensinamentos para todos os partidos e militantes comunistas.
Oxalá tenha conseguido contribuir para relembrar/despertar o interesse pela sua leitura, tornando-a tão palpitante quanto o são as ideias revolucionárias que nos legou.