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quarta-feira, 27 de junho de 2012

Congresso Marx em Maio – Perspectivas para o século XXI - Intervenções (II)

Desta importante comunicação de António Avelãs Nunes, não obstante a informação que contém e o seu carácter pedagógico, transcrevem-se apenas alguns dos seus pontos, dado que a sua extensão torna impraticável a publicação integral neste espaço. Como todas as selecções, esta também corre o inevitável risco de errar, subalternizando pontos que igualmente mereceriam destaque, mas paciência. Aí ficam estes, na convicção que se adequam bem aos propósitos deste blog que, desde o seu lançamento, das ciências económicas sempre privilegiou - e sempre privilegiará - o seu principal ramo: a Economia Política.


CRÓNICA DE UMA CRISE ANUNCIADA

1. –Toda a construção liberal assenta na ideia de que o melhor dos mundos se atinge, graças à mão invisível inventada por Adam Smith, deixando funcionar o mercado para que a taxa de lucro possa crescer, e, com ela, o investimento, o crescimento económico e o bem-estar para todos.
Este otimismo dos clássicos ingleses acerca das possibilidades de crescimento sem limites e da melhoria generalizada das condições de vida vinha reforçado pela confiança na Lei de Say, segundo a qual não são possíveis crises de sobreprodução generalizadas, e pela convicção de que, em virtude de leis naturais, os salários nunca poderiam, duradouramente, ultrapassar o valor correspondente ao mínimo de subsistência.
Este o enquadramento que justificava o paraíso liberal (o mesmo dos neoliberais dos nossos dias).
A verdade, porém, é que Maltuhs e depois Marx, cada um à sua maneira, vieram mostrar o que a vida confirmaria: as crises cíclicas de sobreprodução são inerentes ao capitalismo. Perante a evidência da Grande Depressão, o próprio Keynes reconheceu que, nas sociedades capitalistas, as situações de pleno emprego são raras e efémeras. A crise que agora abala o mundo é, pois, mais uma crise do capitalismo, uma “crise estrutural do capitalismo”.

2. –Os factos dão razão ao velho Keynes, que, há mais de 50 anos, advertia para os perigos de paralisação da atividade produtiva em consequência do aumento da importância dos mercados financeiros e da finança especulativa.
Talvez por isso a ideologia dominante se tenha apressado a decretar a “morte de Keynes”, ‘sacrificado’ no altar dos deuses do neoliberalismo. Desmantelada a regulamentação da atividade bancária e financeira, o capital financeiro ficou inteiramente livre para estabelecer o seu império, com a cumplicidade ativa de uma regulação amiga do mercado.
A ação do capital financeiro especulador acabou por anular as políticas nacionais de regulação das taxas de câmbio, uma vez que as autoridades competentes de muitos países ficaram sem meios para se defender eficazmente da ação dos especuladores. Basta recordar que o montante das reservas detidas pelos bancos centrais de todo o mundo (principal meio de defesa das moedas nacionais) é sensivelmente igual ao montante das transações diárias no mercado cambial (em grande parte puramente especulativas).
Por outro lado, o poder político do capital financeiro desmantelou todas as estruturas e mecanismos de regulação e de controlo da atividade financeira, que vinham dos tempos do combate à grande depressão dos anos 1930, a primeira grande crise do capitalismo marcada pelo predomínio do capital financeiro e pela especulação financeira.

2.1. - A aceleração do processo de 'inovação' financeira traduziu-se, nomeadamente, no desenvolvimento dos mercados de produtos financeiros derivados. Chamam-lhe produtos para criar a ilusão de que resultam de uma qualquer ‘indústria’ (também se fala da indústria bancária…) ou de outra atividade produtiva, mas essa é, a todas as luzes, uma designação falsa, enganadora e não inocente.
Criados como instrumentos de gestão dos riscos inerentes à instabilidade das taxas de juro e das taxas de câmbio, estes ‘produtos’ transformaram-se de imediato em instrumentos destinados apenas a alimentar as ‘apostas’ na bolsa (o grande casino do capital financeiro), dada a pequena percentagem do capital investido em relação aos ganhos possíveis, e revelaram-se um novo e poderoso fator de instabilidade dos mercados financeiros.
Trata-se de produtos virtuais, cujo valor global se calcula em cerca de mil biliões de dólares (o equivalente a vinte anos da produção mundial!), mal conhecidos, que não têm qualquer relação com a economia real e com as atividades produtivas (criadoras de riqueza). É capital puramente fictício, cujo valor é fixado em função dos ganhos que os ‘apostadores’ prevêem que podem obter, chamando a si uma parte significativa da riqueza criada pela economia real. Estes ‘produtos’, cada vez mais sofisticados, servem apenas para ganhar dinheiro com a especulação, atraindo bancos, seguradoras, sociedades gestoras de fundos de investimento e de fundos de pensões.
O recurso abusivo à sua emissão e comercialização conduziu rapidamente à manipulação e à instabilidade dos ‘mercados financeiros’, porque os contornos e os riscos que esses ‘produtos’ incorporam nem sempre são facilmente identificáveis, mesmo pelos habituais frequentadores deste ‘casino’ (como os bancos), que compram muitas vezes ‘produtos financeiros’ tão esotéricos que não sabem exatamente o que estão a comprar.
Na última década do século XX, o volume das transações sobre os mais perigosos destes ‘produtos’, os chamados over-the-counter derivative markets, aumentou de 24,6 mil milhões de dólares em 1992 para 94,6 mil milhões de dólares em 1999 (um aumento de quase 285%!). O Relatório Podimata (aprovado pelo Parlamento Europeu em fevereiro/2011) salienta que, em termos globais, o volume das transações financeiras, muitas delas implicando a exposição em elevado grau de capitais alheios nos ‘jogos de casino’, aumentou sempre ao longo da década que terminou em 2007, em especial devido ao incremento das transações sobre produtos derivados, tendo atingido neste ano um valor igual a 73,5 vezes o PIB nominal mundial.

2.2. - Os especialistas avisaram que este fenómeno (completamente alheio às necessidades da economia real), para além de expor as instituições financeiras aos riscos máximos inerentes à natureza volátil destes ‘produtos’, tornava muito mais difíceis o controlo pelas autoridades de supervisão e a auditoria das contas daquelas instituições. Os seus defensores, porém, não se cansavam de proclamar as ‘virtudes globais’ de tais produtos: “Formas inteiramente novas de instrumentos financeiros tiveram de ser inventadas ou desenvolvidas – derivativos de crédito, títulos lastreados em ativos, futuros de petróleo e congéneres, que criam condições para o funcionamento muito mais eficiente do sistema de comércio mundial”. É este o ponto de vista de Alan Greenspan.
Para além dos riscos inerentes à proliferação dos 'produtos derivados', a liberalização dos movimentos de capitais, ao serviço do objetivo de criar um mercado único do capital à escala mundial, arrastou consigo um conjunto de alterações que vieram potenciar fortemente a ameaça de risco sistémico.
Com efeito, a internacionalização dos mercados de valores mobiliários veio colocar em rede mercados muito diferentes, cada um com as suas regras de funcionamento e os seus riscos específicos, abrindo caminho à propagação contagiosa dos fatores de risco.
Por outro lado, a ausência de controlo dos mercados financeiros e dos movimentos de capitais pelos estados nacionais provocou uma onda sem precedentes de concentrações, de fusões e de aquisições de empresas financeiras, com a redução acentuada do número de bancos (que controlam companhias de seguros e, direta ou indiretamente, outras instituições financeiras, nomeadamente sociedades gestoras de fundos de investimento e de fundos de pensões), a concentração nos maiores deles da parte de leão dos depósitos bancários e a preponderância dos grandes bancos nas operações de fusão e aquisição de empresas do setor financeiro.
Um estudo recente de três investigadores do Instituto Federal Suíço de Tecnologia dá-nos conta do grau de concentração do poder económico-financeiro ao nível dos centros de decisão a nível mundial. Partindo da definição de empresas transnacionais adotada pela OCDE, os autores selecionaram 43.060 empresas de entre as registadas no banco de dados Orbis 2007.
Neste conjunto de empresas, detetaram mais de 600 mil participações diretas e mais de um milhão de participações indiretas no capital de outras empresas. De entre elas, apuraram um núcleo constituído pelas 1318 mais poderosas empresas transnacionais, que representam diretamente 20% do rendimento global.
Uma análise mais fina permitiu-lhes concluir que cada uma destas empresas tem, em média, participações no capital de 20 outras grandes empresas, o que permite a este grupo de 1318 empresas transnacionais deter ou controlar, em conjunto, cerca de 60% da economia mundial.
Dentro deste grupo, o estudo identificou um núcleo mais restrito de 147 entidades (3/4 das quais são instituições financeiras: bancos, seguradoras, fundos de investimento, fundos de pensões) que dominam grande parte das restantes: menos de 1% das entidades estudadas controlam 40% de toda a rede. Acresce que estas 147 entidades nucleares estão ligadas entre si por uma densa teia de participações cruzadas, o que faz delas o verdadeiro ‘governo’ do mundo capitalista. Ficamos a saber o que são “os mercados” e compreendemos que estes “mercados” não sejam compatíveis com a democracia. (...) Em pouco tempo a crise instalou-se no mercado interbancário, o mercado em que os bancos emprestam dinheiro uns aos outros, em regra a prazos muito curtos. Perante a realidade, os bancos deixaram de confiar uns nos outros (porque conheciam bem o lixo que todos tinham acumulado) e deixaram de conceder crédito uns aos outros, o que provocou a diminuição da liquidez, a escassez do crédito e o aumento das taxas de juro.
Num artigo publicado em L’Express em finais de 2011, até o insuspeito Jacques Attali vem reconhecer que “esta crise foi consequência do enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado”. Mas a importância do “enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado” como elemento potenciador de crises de sobreprodução é de há muito conhecida. Marx esclareceu esta questão. E Keynes, à sua maneira, deixou claro que as enormes desigualdades de rendimento não favoreciam o crescimento económico, antes provocariam a insuficiência da procura efetiva, que ele considerava a causa das crises cíclicas próprias do capitalismo.


(...) 7. – Parece até que, desta vez, tudo foi planeado para que a crise acontecesse.
Num artigo publicado em L’Express em finais de 2011, até o insuspeito Jacques Attali vem reconhecer que "esta crise foi consequência do enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado".30 Mas a importância do "enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado" como elemento potenciador de crises de sobreprodução é de há muito conhecida. Marx esclareceu esta questão. E Keynes, à sua maneira, deixou claro que as enormes desigualdades de rendimento não favoreciam o crescimento económico, antes provocariam a insuficiência da procura efetiva, que ele considerava a causa das crises cíclicas próprias do capitalismo.
E, no entanto, a tentativa de travar a tendência para a baixa da taxa de lucro (que a crise de 1973-1975 evidenciara) conduziu, nas últimas décadas, à adoção de políticas sistemáticas de diminuição da parte dos salários no rendimento global e do poder de compra dos salários, apesar de se saber que estas políticas potenciam a ocorrência de crises.

7.1. – O pensamento liberal sempre assumiu que a baixa dos salários reais é o elemento indispensável para tornar atrativa a contratação de trabalhadores desempregados e assim inverter o ciclo, abrindo o caminho para que, com base no funcionamento do mercado livre, se atinjam situações de reequilíbrio com pleno emprego em todos os mercados e em todos os setores da economia.
Hayek enfatiza este ponto: "o problema do desemprego é um problema de salários". Isto é: a diminuição dos salários reais e salários reais baixos são a condição indispensável e decisiva para se prevenirem e se ultrapassarem as crises, que poderiam ser evitadas se se deixassem funcionar livremente os mercados, nomeadamente o
mercado de trabalho, liberto das ‘imperfeições’ que o descaraterizam (contratação coletiva, salário mínimo garantido, proteção legal contra os despedimentos sem justa causa, subsídio de desemprego, etc.).
Compreende-se, por isso, que, ao longo das últimas quatro décadas de império neoliberal, os interesses e os atores que estão por detrás da financeirização tenham pressionado (e continuem a pressionar) os governos a adotar as políticas de arrocho salarial (diminuição dos salários reais e diminuição da parte da riqueza criada que cabe aos trabalhadores), bem como as políticas que dão primazia ao combate à inflação (para não ficarem em risco as cotações dos valores mobiliários) e que desvalorizam a promoção do crescimento e do emprego.
Num contexto de acentuado desenvolvimento científico e tecnológico (rapidamente incorporado na atividade produtiva) e consequente aumento da produtividade, tratava-se de fazer reverter os ganhos da produtividade em benefício do capital, impedindo os trabalhadores de beneficiar condignamente da riqueza que criam.

7.2. - Em termos globais, a produtividade aumentou, à escala mundial, nos últimos dez anos, cerca de 30%, enquanto o aumento dos salários não foi além de 18%.
A ‘globalização’ aumentou enormemente o número de trabalhadores disponíveis à escala mundial, tendo o exército de reserva de mão-de-obra aumentado também, no quadro europeu, na sequência da implosão da URSS, do desaparecimento da comunidade socialista europeia e da integração de vários dos países da Europa central e de leste na própria União Europeia.
Os especialistas põem em relevo o facto de que "os trabalhadores de todos os países, independentemente do seu grau de desenvolvimento industrial e do sistema social, estão doravante em concorrência entre si, em todos os domínios da economia, com um leque salarial entre um e 50 ou mais". O aumento da concorrência entre os trabalhadores neste novo mercado mundial do trabalho já foi considerado "a principal consequência social da mundialização". Ele é, sem dúvida, um elemento novo na caraterização do capitalismo global, que não existia em 1916, quando Lenine publicou o estudo clássico sobre O Imperialismo, e que precisa de ser analisado à luz da revolução científica e tecnológica do último quarto de século.

Nestas condições particularmente favoráveis ao capital, o referido objetivo foi plenamente conseguido. O aumento da parte do capital na partilha do valor criado pelo trabalho produtivo atingiu mesmo proporções escandalosas. A distorção, em favor do capital, da chamada distribuição funcional do rendimento tem-se traduzido no agravamento da exploração e no empobrecimento relativo (e mesmo absoluto) da grande massa dos trabalhadores, tanto nos chamados ‘países ricos’ como nos ditos ‘países pobres’.Um estudo do FMI, publicado em 2007, mostra que a parte do rendimento do trabalho no rendimento nacional baixou, de forma sistemática, entre 1980 e 2005, no conjunto dos países mais desenvolvidos. No Relatório sobre o Trabalho no Mundo/2008, a OIT sublinha que "em 51 dos 73 países para os quais existem dados disponíveis, a parte dos salários no rendimento nacional tem diminuído ao longo dos últimos vinte anos", especificando que "o declínio mais forte da parte dos salários no PIB teve lugar na América Latina e nas Caraíbas (-13 pontos percentuais), seguindo-se a Ásia e o Pacífico (-10 pontos percentuais) e as economias desenvolvidas (- 9 pontos percentuais)".
Um documento de trabalho apresentado na reunião de julho de 2010 do Banco de Pagamentos Internacionais faz uma longa análise crítica deste mesmo fenómeno: "A parte dos lucros é hoje invulgarmente elevada, e a parte dos salários invulgarmente baixa. De facto, a dimensão desta evolução e o leque dos países a que diz respeito não têm precedentes nos últimos 45 anos".
Para o conjunto da UE, a Comissão Europeia regista uma diminuição da parte dos salários de 8,6% entre 1983 e 2006 (9,3% na França). E, para o conjunto dos países do G7, o FMI aponta, para o mesmo período, uma diminuição de 5,8%.
Os dados oficiais mostram que, na UE/15, a parte dos rendimentos do trabalho no rendimento nacional passou de 65% em 1980 para 49,4% em 2005 e 48,9% em 2008. Tomando a UE/25, essa percentagem passou de 50,2% em 2002 para 48,5% em 2008, sabendo-se que, em vários países da UE, entre os quais Portugal, esta percentagem é ainda mais baixa.
Em finais de 2007, alguém tão insuspeito como Alan Greenspan reconhecia que "a parte dos salários no rendimento nacional nos EUA e em outros países desenvolvidos atingiu um nível excepcionalmente baixo segundo os padrões históricos, ao invés da produtividade, que vem crescendo sem cessar." E não escondeu a sua preocupação, invocando que "esta desproporção entre fracos níveis salariais e lucros historicamente muito elevados faz temer um aumento da animosidade contra o capitalismo e o mercado, tanto nos EUA como em outras zonas do mundo".
É capaz de ter razão. Mas é curioso que Greenspan não tenha sequer aludido ao risco de uma crise grave do capitalismo, como consequência do fenómeno que regista. Talvez porque ele é um fiel da Lei de Say e acredita que as crises de sobreprodução não são possíveis nas sociedades capitalistas… 

 (...) O Presidente do Banco Mundial (Robert Zoellick) escrevia, em outubro/2010: "Pela primeira vez na história, mais de mil milhões de pessoas deitam-se todas as noites com a barriga vazia".
Num Relatório da OCDE de finais de 2011 (6 de dezembro) põe-se em relevo o facto de as desigualdades sociais terem aumentado ininterruptamente ao longo dos últimos trinta anos, tendo atingido níveis de rotura: "o contrato social está a desfazer-se em muitos países", recordou o Secretário-Geral daquela Organização, durante a sessão de apresentação do relatório, em Paris.
Segundo dados do FMI (outono/2010), as políticas neoliberais destruíram, em 2009, à escala mundial, 30 milhões de postos de trabalho, dando uma boa contribuição para engrossar o número dos desempregados, que rondará, segundo a OIT (Tendências Mundiais do Emprego - 2011) os 205 milhões em todo o mundo, sendo que 1530 milhões dos que têm trabalho desenvolvem a sua atividade em condições de precariedade. Considerando pobres aqueles que auferem rendimento inferior a 60% do salário médio do país onde vivem, 80 milhões de cidadãos da rica UE vivem abaixo do limiar da pobreza (incluindo 19 milhões de crianças), e cerca de 17% dos europeus não têm recursos suficientes para satisfazer as suas necessidades básicas (dados da Comissão Europeia referentes a 2010). E o Grupo de Reflexão constituído no âmbito do Conselho Europeu e presidido por Felipe González concluiu que, "pela primeira vez na história recente da Europa, existe um temor generalizado de que as crianças de hoje terão uma situação menos confortável do que a geração dos seus pais".
(...) 9. –O recurso às políticas orientadas para provocar a baixa dos salários reais tem sido o principal expediente utilizado para tentar contrariar a tendência estrutural no sentido da baixa da taxa de lucro. Mas a verdade é que o salário pago aos trabalhadores não é apenas um elemento dos custos de produção. É também o rendimento que alimenta o poder de compra da grande maioria da população que há-de comprar as mercadorias que foram produzidas com o único objetivo de serem vendidas no mercado e que têm de ser vendidas para que os empresários capitalistas possam recuperar o capital adiantado e apoderar-se da mais-valia (em linguagem marxista).
Por isso, a diminuição do poder de compra dos trabalhadores não pode ser inteiramente compensada pelo aumento do consumo de luxo e de superluxo dos ricos. Esse aumento – que se tem, aliás, registado, de forma explosiva, ‘queimando’ para investimentos produtivos e investimentos sociais uma parte significativa da riqueza criada – não basta (como já Henry Ford e Keynes tinham percebido) para assegurar uma procura agregada que acompanhe o aumento da capacidade de produção. A sociedade de produção em massa exige um consumo de massa.
Pode aumentar a pressão consumista, usando e abusando dos instrumentos ao serviço da sociedade de consumo. Mas isso também não basta: a tentativa de compensar a redução do poder de compra dos salários através do estímulo ao consumo financiado pelo crédito (credit-financed-consumption) não chega para anular os efeitos daquela redução, e provoca a baixa generalizada e acentuada da taxa de poupança das famílias (e dos estados) e o sobreendividamento de muitas delas, que acabam por não poder pagar os encargos assumidos.
A crise económica e social aberta na sequência da crise financeira e da crise fiscal dela resultante veio confirmar o que já se sabia: ao reduzir os salários, o capital aumenta a sua taxa de mais-valia. Mas, ao fazê-lo, reduz o poder de compra dos trabalhadores, que constituem a grande massa dos consumidores, colocando em risco a realização da mais-valia, abrindo, deste modo, uma crise de sobreprodução. Porque as crises cíclicas inerentes ao capitalismo são, precisamente, crises de realização da mais-valia.
O predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo tem acentuado os riscos de crise nos setores das atividades produtivas (nomeadamente nos setores industriais), aumentado as dificuldades do capital produtivo em recuperar o capital adiantado e agravando a tendência para a baixa da taxa de lucro, uma vez que as rendas do capital financeiro (com realce para o capital especulativo) vêm absorvendo uma parte crescente da mais-valia global.
 
(...) 12. – Como é sabido, no rescaldo da primeira grande crise do capitalismo ocorrida após um período de euforia especulativa, Keynes (1936) veio defender junto dos que, como ele, queriam salvar o capitalismo, a ideia de que a socialização do investimento tornaria o capital abundante e baixaria as taxas de juro para valores próximos de zero dentro de um prazo de 25 anos, provocando deste modo, gradualmente, sem necessidade de qualquer revolução, o que ele chamou a eutanásia do rendista, a morte do capitalista sem profissão (“functionless investor” – cap. XXIV da General Theory).
Mas a contra-revolução monetarista veio matar Keynes, enterrado a preceito, para que não ressuscitasse. E a cartilha neoliberal impôs, ao longo das últimas décadas, políticas deliberadamente empenhadas em criar as condições favoráveis à especulação e em proteger os que vivem das ‘rendas’ da especulação bolsista, das ‘rendas’ da especulação imobiliária e de todas as ‘rendas’ de tipo feudal garantidas pelo estado capitalista, agora na veste de estado garantidor.
Neste ambiente, a crise chegou, esperada e talvez programada. Trata-se de uma crise do neoliberalismo, diagnosticaram alguns, com o objetivo de fazer passar a mensagem de que o capitalismo não tem que ver com as crises, que o capitalismo – com a sua famosa economia de mercado – é intocável e é eterno, como eternas e universais são as leis que o governam.
A verdade, porém, é que o neoliberalismo não existe fora do capitalismo, não é um fruto exótico que nasceu nos terrenos do capitalismo, nem é o produto inventado por uns quantos ‘filósofos’ que não têm mais nada em que pensar.
O neoliberalismo corresponde a “uma nova fase na evolução do capitalismo”.  O neoliberalismo é o reencontro do capitalismo consigo mesmo, depois de limpar os cremes das máscaras que foi construindo para se disfarçar. O neoliberalismo é o capitalismo na sua essência de sistema assente na exploração do trabalho assalariado, na maximização do lucro, no agravamento das desigualdades.
O neoliberalismo é o capitalismo puro e duro do século XVIII, mais uma vez convencido da sua eternidade, e convencido de que pode permitir ao capital todas as liberdades, incluindo as que matam as liberdades dos que vivem do rendimento do seu trabalho.
O neoliberalismo é a expressão ideológica da hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo, hegemonia construída e consolidada com base na ação do estado capitalista, porque, ao contrário de uma certa leitura que dele se faz, o neoliberalismo exige um forte estado de classe ao serviço dos objetivos do setor dominante das classes dominantes, o capital financeiro.
O neoliberalismo é a ditadura da burguesia, sem concessões. Mais especificamente: a ditadura do grande capital financeiro.

(...) 13. – As ideias que acabámos de enunciar não são ideias novas. O facto de elas terem sido deliberadamente ‘esquecidas’ pode resultar da atitude obscurantista dos fanáticos do deus-mercado, mas pode resultar também da vontade destes mesmos e de todos os setores do capital de, num quadro que consideravam favorável, desencadear uma crise, para, a coberto dela e sob o pretexto de a combater, acentuarem as políticas tendentes a aniquilar de uma vez por todas os direitos sociais dos trabalhadores (e, portanto, também os seus direitos civis e políticos), com o objetivo de fazer regressar o mundo aos tempos do capitalismo selvagem (que é, afinal, o capitalismo na sua essência).
A presente crise, fruto das desigualdades, vem agravando as desigualdades e vem alargando a pobreza (com um número cada vez maior de pobres que trabalham), confirmando o capitalismo a sua caraterística genética de “civilização das desigualdades”.
Razões não faltam, como se vê, para deitar fora os catecismos neoliberais: no plano teórico, o neoliberalismo está completamente desacreditado, e os resultados das políticas neoliberais são consabidamente desastrosos. A verdade, porém, é que o neoliberalismo não saiu de cena: os pontos deste ‘teatro do mundo’ continuam a soprar aos atores em palco os mesmos textos… E os governantes de turno não conhecem outra cartilha. Infelizmente, até hoje a realidade confirma este diagnóstico.
Esta não será a última crise do capitalismo, mas ela ajudará a enfraquecer ainda mais este corpo condenado a morrer (como tudo o que é histórico) e a dar lugar a um mundo diferente, apesar de todos os meios – e são muitos – que podem ainda prolongar-lhe a vida.
O feudalismo deu o lugar ao capitalismo quando, após um longo período de desagregação, aquele modo de organização económico-social assente na servidão pessoal se revelou incapaz de continuar a garantir as rendas que sustentavam o estatuto privilegiado das classes dominantes, que já não tinham mais margem para aumentar a exploração dos trabalhadores servos. Talvez se aproxime o tempo em que as contradições do capitalismo comecem a revelar a sua incapacidade para manter as rendas do capital financeiro (verdadeiras rendas feudais). A menos que, esgotada a possibilidade de novas exigências aos trabalhadores assalariados, se recorra, uma vez mais, à barbárie extrema.

Há mais de cinquenta anos, o argentino Raúl Prebisch (o primeiro Presidente da agência da ONU Comissão Económica para a América Latina) avisou que as soluções liberais só podem concretizar-se manu militari. No início dos anos 1980, Paul Samuelson chamava a atenção para os perigos do “fascismo de mercado”. Mais recentemente, foi Paul Krugman quem recordou: “Somos uma sociedade em que a concentração do rendimento e da riqueza nas mãos de poucas pessoas ameaça fazer com que sejamos uma democracia somente de nome (…), uma vez que a concentração extrema do rendimento é incompatível com a democracia real”.
Se tivermos presente esta lição, compreendemos que a luta contra o neoliberalismo e contra as políticas nele inspiradas é uma luta pela democracia. E esta luta trava-se hoje também no terreno do trabalho teórico (que nos ajuda a compreender a realidade para melhor intervir sobre ela) e no terreno da luta ideológica, porque o peso dos aparelhos ideológicos ao serviço da ideologia dominante é hoje talvez o fator mais importante na determinação da correlação de forças que decide as lutas sociais e porque a luta ideológica é, hoje mais do que nunca, um fator essencial da luta política e da luta social (da luta de classes).

Parafraseando um poeta brasileiro (Álvaro Moreyra), uma coisa parece hoje incontestável: este mundo está todo errado. É preciso passá-lo a limpo. Aos universitários e aos intelectuais em geral cabe, como cidadãos, como universitários e como intelectuais, uma responsabilidade enorme nas lutas a travar nestes domínios, para que um dia, como nos diz a canção de Xico Buarque, possa nascer uma flor no “impossível chão”.

(António José Avelãs Nunes, Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Em Abril de 1988 foi aprovado por unanimidade no concurso para uma vaga de Professor Associado do 2º Grupo (Ciências Económicas) do quadro da FDUC. É Professor Catedrático de nomeação definitiva do quadro da FDUC desde Julho de 1995, após concurso público em que foi aprovado por unanimidade.)

 

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