SÓ NÃO SE ENGANA QUEM CEDE AO MEDO DE CAMINHAR NO DESCONHECIDO - SÓ SE PERDE AQUELE QUE NÃO ESTÁ SEGURO DO RUMO QUE ESCOLHEU.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Centenário de um Revolucionário - Páginas didácticas de História (IV)


(...)Nos nossos dias e no nosso país, enganam-se também a si próprios e, queiram ou não queiram, enganam o povo aqueles que afirmam que a formação dum governo constituído por democratas, socialistas, mesmo comunistas, asseguraria, por si só, a realização duma política democrática, sem que para isso se tornasse necessária a destruição do aparelho do Estado organizado pelos fascistas.
Alguns, reconhecendo a dificuldade, julgam descobrir a solução ao imaginarem uma redistribuição dos cargos, com demissões dos fascistas mais notórios dos lugares mais responsáveis e a nomeação em sua substituição de «homens de confiança». Nem se trata de um descoberta nem de uma solução. Tapando o buraco com uma tábua furada, à primeira ilusão acrescentam uma segunda.
Tal «solução» é a velha solução das «revoluções» burguesas e pequeno-burguesas, em que os partidos, que se substituíam no poder, multiplicavam nomeações e redistribuições de cargos. Em Portugal, foi o processo habitual do partidos que se sucediam no governo, tanto no tempo da monarquia constitucional, como no da república parlamentar. Diversos políticos se gabaram de ter cansado os braços no primeiro dia de governo a assinar demissões e nomeações, E entretanto nos mais dos casos de pouco lhes valia o expediente. Tal «solução» pode ser viável (embora nem sempre o seja), quando se não trata de verdadeiras revoluções, quando se não trata de alterar a «arquitectura social da Nação», mas apenas de mudar equipas burguesas, por virtude do jogo de interesses e rivalidades de grupos e camadas da burguesia. Mas, quando se trata de revoluções que alteram a natureza de classe da política governamental, então a redistribuição dos cargos é insuficiente para que o aparelho do Estado assegure a realização pelo governo das reformas ou medidas revolucionárias que se impõem.
Falando ainda da revolução russa de Fevereiro de 1917, Lénine notava como «tanto em cima como em baixo», os cargos de funcionários se haviam tornado o espólio de kadetes, mencheviques e socialistas-revolucionários. As reformas que se impunham nem por isso foram realizadas.
Não considerando de momento a via para o derrubamento do fascismo, se admitíssemos que, posto fim à ditadura fascista, se instalava no poder um governo democrático que se limitasse a «liberalizar» o aparelho do Estado fascista e a «redistribuir» os cargos, que aconteceria?
Das duas uma: Ou tal governo pretendia realizar uma política realmente democrática, realizar as reformas indispensáveis para assegurar o progresso social, atingir as forças sociais e políticas reaccionárias, e nesse caso o aparelho do Estado sabotaria e impediria de facto a realização de tal política e seria, caso necessário, um instrumento da contra-revolução.
Ou tal governo acabava por trair a sua missão, renunciando a uma política democrática e aceitando as imposições do capital financeiro e do aparelho do Estado que nunca deixara de servi-lo. E então? Então tão pouco seriam estáveis as «liberdades». É de prever que as classes trabalhadoras manifestariam a sua indignação, exigiriam do governo a satisfação das suas aspirações; e que o governo, apesar de «democrático» ou mesmo «socialista», apoiando-se no aparelho do Estado e agora apoiado por este, responderia com esquivas, com medidas demagógicas e finalmente com a repressão. A agudização da luta de classes levaria a equipa governante, com medo da revolução, a reforçar o aparelho repressivo. E, se em qualquer momento essa equipa não se mostrasse à altura da sua tarefa como defensora dos grupos monopolistas, dos latifundiários, dos colonialistas, do imperialismo estrangeiro, todos estes utilizariam a máquina do Estado, que lhes foram «conquistada» mas nunca verdadeiramente arrebatada, para formar um governo mais fiel aos seus interesses e mais «competente» na sua defesa. A reacção, a contra-revolução, mesmo o fascismo, passariam de novo à ofensiva.
As forças democráticas portuguesas devem trabalhar para que tais situações se não venham a verificar. Devem ter perfeitamente clara a ideia de que, depois de derrubado o fascismo, nenhuma política democrática poderá ser levada a cabo em Portugal, nenhumas reformas sociais profundas poderão ser realizadas, o poder dos monopólios e latifundiários não poderá ser liquidado, nenhuma garantia poderá haver contra nova ofensiva vitoriosa da reacção e do fascismo, se o aparelho do Estado for apenas conquistado, remodelado e liberalizado. É um absurdo pensar que uma revolução pode realizar-se apoiada no aparelho do Estado das classes contra as quais essa mesma revolução é dirigida.

6.

Se a revolução antifascista é considerada, não como a substituição da equipa governante fascista ao serviço dos monopólios por uma equipa liberal igualmente ao serviço dos monopólios, não como a precária subida ao poder de homens progressistas sem os meios de realizar uma política progressiva, mas como a abolição do poder dos monopólios e latifundiários, a sua expulsão do poder, a destruição das bases sociais do fascismo, a implantação dum regime democrático, a satisfação das aspirações mais sentidas dos trabalhadores, dos camponeses, dos intelectuais, das camadas sociais exploradas e oprimidas durante 40 anos de fascismo, — então a posição em relação ao problema do Estado tem de ser necessariamente diversa. Então tem de concluir-se que não basta tomar conta do aparelho do Estado. É necessário destruir a «organização da violência» o «poder especial de repressão» que os monopólios, os latifundiários, os sectores mais reaccionários da burguesia, criaram e organizaram cuidadosamente ao longo de dezenas de anos para seu uso e sua defesa. É necessário construir um aparelho do Estado capaz de assegurar a realização dos objectivos políticos, sociais, económicos e culturais da revolução antifascista, capaz de esmagar a resistência (que não deixará de ser encarniçada) das classes desalojadas do poder, capaz de defender o novo regime das tentativas da contra-revolução e mesmo de uma eventual intervenção estrangeira. Sem tal Estado, a democracia não será viável em Portugal.(...)

 
(Álvaro Cunhal, "A questão do Estado, questão central de cada revolução", 1967)

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