SÓ NÃO SE ENGANA QUEM CEDE AO MEDO DE CAMINHAR NO DESCONHECIDO - SÓ SE PERDE AQUELE QUE NÃO ESTÁ SEGURO DO RUMO QUE ESCOLHEU.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Europa - 1914/2014 - As lições em "Os Thibault"


Obra-prima universal, passível de múltiplas leituras ao longo dos anos, "Os Thibault" encerra numerosas e riquíssimas lições sobre a complexidade e vicissitudes das vidas dos seus personagens, sobre a Humanidade na viragem dos séculos XIX-XX, sobre o flagelo da 1ª Guerra Mundial 1914/18.
Aqui, escolheram-se três trechos do seu terceiro e último volume que constituem outras tantas lições políticas, lições decisivas sobretudo para nós, comunistas, herdeiros da antiga designação de social-democratas (socialistas, na versão brasileira).
Cem anos depois, hoje com configurações diversas na arrumação das forças em presença, a criminosa competição inter-imperialista volta a lançar sobre os povos europeus - e não só - a ameaça negra da guerra. Militares e aviões militares de caça portugueses, a mando da NATO, acabam de ser envolvidos nos preparativos agressivos do imperialismo no teatro de operações europeu.
As responsabilidades dos comunistas, na frente da luta contra a guerra imperialista e pela paz entre os povos, são responsabilidades com conteúdo de classe, contra novos nacionalismos e falsos patriotismos que já se afirmam com descaramento. Que as lições do fiasco trágico da II Internacional sejam um esteio claro e firme para nos comportarmos perante os trabalhadores e os povos.

                                                                         1

(...) "A multidão comprimida naquela atmosfera sufocante começava a inquietar-se. Para a distrair, os militantes belgas tiveram a ideia de entoar o seu hino: Proletários, uni-vos, que logo toda a gente cantou em coro. Hesitante de início, cada voz, apoiando-se na do vizinho, tornou-se firme; e não só cada voz: cada coração. Esse canto criava um laço, tornava-se um símbolo sonoro, concreto, de solidariedade.
Quando os delegados, tão esperados, apareceram por fim no fundo do Circo, a sala inteira ergueu-se e um clamor reboou; um clamor alegre,familiar, confiante. E espontaneamente, sem que nenhum sinal convencional tivesse sido feito, a Internacional, jorrando de todos os peitos, cobriu o tumulto das ovações. Depois, a um sinal de Vandervelde, que presidia, os cantos cessaram, como de má vontade. E, enquanto aos poucos se estabelecia o silêncio, todas as cabeças ficaram voltadas para aquela falange de chefes. Os vários jornais do Partido tinham popularizado as suas figuras. Apontavam-nos com o dedo. Sussurravam os seus nomes. Nenhum país faltara ao apelo. Naquela hora angustiante da vida continental, toda a Europa operária ali estava, representada naquele pequeno estrado onde se concentravam dez mil olhares carregados da mesma teimosia e solene esperança.
Essa confiança colectiva, contagiosa, redobrou quando se soube por Vandervelde que, por proposta do partido alemão, o Centro decidira reunir em Paris, e a 9 de Agosto, o famoso Congresso Socialista Internacional, anteriormente convocado para o dia 23 em Viena. Em nome do partido francês, Jaurés e Guesde tinham aceitado a responsabilidade da organização; e, apelando para o ardor de todos, projectavam dar a essa manifestação, cuja denominação seria: "A guerra e o proletariado", uma repercussão excepcional.
 - No momento em que dois grandes povos estão na iminência de ser lançados um contra o outro - exclamou Vandervelde - não é nada banal ver os representantes dos sindicatos e dos grupos trabalhistas de um desses países, que foram eleitos por mais de quatro milhões de camaradas, encontrarem-se no território da nação considerada inimiga, para confraternizar e proclamar a sua vontade de manter a paz entre os povos!
Haase, deputado socialista no Reichstag, ergueu-se entre aplausos. O seu corajoso discurso não deixou subsistir o menor equívoco quanto à sinceridade da colaboração do social-democrata.
 - O ultimatum austríaco foi uma verdadeira provocação... A Áustria quis a guerra... Parece contar com o apoio da Alemanha... Mas o socialismo alemão não concebe que o proletariado possa ser obrigado por tratados secretos... O proletariado alemão declara que a Alemanha não deve intervir, NEM MESMO que a Rússia entre no conflito!
Aclamações interrompiam cada uma das suas frases. A clareza dessa proclamação era um alívio para todos.
 - Os nossos adversários que tenham cuidado! - exclamou ele, finalizando. - É possível que os povos, fatigados de tanta miséria e de tanta opressão, despertem finalmente e se unam para fundar a sociedade socialista!
O italiano Morgari, o inglês Keir-Hardie, o russo Roubanovitch tomaram sucessivamente a palavra. A Europa proletária não tinha senão uma voz para vergastar o perigoso imperialismo dos seus governantes e para reclamar as concessões necessárias à manutenção da paz.
Quando Jaurés, por sua vez, se adiantou para falar, redobraram as ovações."(...)
 
                                                                             2 

(...)"O velho tipógrafo, com as mãos no fundo dos bolsos da sua blusa negra, andava de um lado para o outro nos três quartos do seu rés-do-chão cujas portas estavam abertas. Estava só. Sem interromper a marcha, gritou: - Entre! - e não se voltou senão quando o visitante fechou a porta.
 - És tu, rapaz?
 - Bom dia. Pode guardar-me isto? - perguntou Jacques, mostrando a bagagem. - Alguma roupa, sem marca. Nenhum papel, nenhum nome.
Mourlan fez um breve sinal de aquiescência. O olhar continuava carregado e duro.
 - Que fazes tu ainda aqui? - perguntou ele brutalmente.
Jacques considerou-o, confuso.
 - O que esperas para te pores ao fresco? Vocês não compreendem que desta vez a coisa está feita, imbecis?
 - É você quem diz uma coisa dessas, você, Mourlan?
 - Sim, eu mesmo - disse ele com a sua voz cavernosa.
Sacudiu as migalhas de pão que lhe tinham ficado na barba, tornou a pôr as mãos nos bolsos e recomeçou a caminhar.
Jacques nunca lhe vira aquela expressão desfeita, aquele olhar apagado. Era preciso esperar que a crise passasse. Sem ter sido convidado, agarrou numa cadeira e sentou-se.
Mourlan fez duas ou três vezes o seu passeio de fera enjaulada, depois parou diante de Jacques:
 - Com que é que tu contas, hoje? - gritou ele. - Com as famosas "massas trabalhadoras"? Com a greve geral?
 - Sim! - articulou Jacques com firmeza.
Um estremecimento sacudiu os ombros do velho Cristo:
 - A greve geral? Bolas! Quem é que ainda hoje fala nisso? Quem é que ainda ousa pensar nela?
 - Eu!
 - Tu? Tu não vês então que, mesmo nesse pobre rebanho que se queria salvar mau grado seu, há uma maioria esmagadora de imprudentes, de brigões, de salteadores natos, sempre prontos a responderem a um desafio? E que serão os primeiros a agarrar nas espingardas uma vez que lhes façam acreditar que um alemão transpôs a fronteira?... Cada homem, tomado à parte, é em geral um pobre diabo, que diz não querer mal a ninguém, e que acredita nisso. Mas há ainda nele um resíduo de instintos carniceiros, destruidores: instintos de que não se orgulha, e que esconde, mas que o devoram, apesar de tudo, e que sempre tem vontade de satisfazer, por pouco que se lhe proporcione ocasião... O homem é homem, e nada se pode fazer!... Então, se não podes contar com os indivíduos, com quem é que tu contas? Com os chefes? Quais? Com os chefes do proletariado europeu? Com os nossos? Com os nossos simpáticos eleitos, os deputados socialistas?... Então não estás a ver o que eles fazem? Votam e revotam confiança em Poincaré! Por pouco, referendariam antecipadamente a sua declaração de guerra!
Rodou nos calcanhares e deu mais uma volta ao quarto.
 - Nunca - murmurou Jacques. - Aqui, há os Jaurés... Fora os Vandervelde, os Haase...
 - Ah, é com os grandes chefes que tu contas? - tornou Mourlan, encaminhando-se direito para ele. - Contudo, viste-os de perto em Bruxelas! Acreditas que se esses imbecis tivessem sido homens, homens verdadeiramente decididos a defender a paz por actos revolucionários, não teriam chegado a entender-se para dar uma palavra de ordem única ao socialismo europeu? Não! Eles fizeram-se aclamar lançando o anátema sobre os governos! E depois? Depois, correram até ao correio para expedir telegramas suplicantes ao Kaiser, ao Tzar, a Poincaré, ao Presidente dos Estados Unidos -, ao Papa! Sim, ao Papa, para que ele ameace Francisco José com o Inferno!... O teu Jaurés, que foi que ele fez? Vai todas as manhãs, como um poltrão, puxar Viviani pela manga, conjurando o seu "caro ministro" a falar grosso para assustar a Rússia!... Não! A classe trabalhadora foi enganada pelos seus próprios chefes! Em vez de encabeçarem resolutamente um movimento insurrecional contra a ameaça, renunciaram à oportunidade revolucionária, entregaram o proletariado ao capitalismo triunfante!...
Afastou-se dois passos, mas deu uma brusca reviravolta:
 - E ninguém me tirará da cabeça que o teu Jaurés não está a representar para as galerias! Ele sabe tão bem como eu que a cartada está jogada, que tudo está perdido! Que amanhã a Rússia e a Alemanha vão entrar na dança! E que Poincaré aceitará a guerra, friamente!... Primeiro porque quererá manter os criminosos compromissos que assumiu em Petersburgo, e depois... - Interrompeu-se para ir até à porta, entreabriu-a suavemente, e fez entrar uma gata cinzenta com os seus três gatinhos: - Vem, bichaninha... - E em seguida porque tem a preocupação de ser aquele que tentou restituir à França a Alsácia-Lorena!
Aproximara-se da prateleira carregada de livros e folhetos que ocupava o espaço entre as janelas. Agarrou num volume, a que deu várias palmadinhas, como se faz ao pescoço de um cavalo. - Vês, pequeno - disse, mais brandamente, enquanto repunha o volume no lugar -, não quero armar em esperto, mas não me enganava quando, depois do Congresso de Basileia, escrevi este volumezinho para lhes provar que a Internacional se alicerçava sobre um equívoco. Jaurés descompôs-me. Toda a gente me insultou. Agora, os factos estão à vista!... Seria loucura querer "conciliar" o Internacionalismo socialista, o nosso, o verdadeiro, com as forças nacionais que ainda mantêm o poder em toda a parte... Querer combater - e esperar vencer - sem sair dos quadros legais, contentando-se em "fazer pressão" sobre os governos, e limitando os ataques a belos discursos parlamentares, é a maior das asneiras!... Queres que te diga uma coisa? No fundo, nove em cada dez dos nossos famosos chefes revolucionários, nunca poderão resolver-se a agir fora dos quadros do Estado! Agora, compreendes bem a lógica. Esse Estado - que eles não souberam, que não quiseram subverter a tempo para o substituir pela República Socialista - têm agora de o defender com a ponta das suas baionetas no dia em que o primeiro soldado alemão aparecer na fronteira! E para isso eles prepararam-se, em surdina!... E vamos assistir a uma coisa destas! - prosseguiu ele com raiva, dando mais uma reviravolta, e caminhando a passos rápidos até à extremidade da sala. - Vai ser a deserção geral, afianço-te! Deserção à Gustave Hervé! A deserção de todos os chefes, do primeiro ao último!... Lestes os jornais? A pátria em perigo! Todos a postos! Espada em punho! Tararatchim! Tararatchim! É o tantã para preparar o grande morticínio!... Daqui a oito dias já não haverá em França, e talvez na Europa, uma dúzia de socialistas puros: não haverá, em toda a parte, senão social-patrioteiros!" (...)
 
                                                                            3 

(...)"Plattner está na parte detrás da sua livraria, entre os fardos de papéis, por detrás da dupla porta de tela envernizada, com todos os postigos fechados, apesar da hora matinal. É um homem de uns quarenta anos, pequeno, feio, doentio; sofre do estômago; tem mau hálito. O seu peito é curvo como o de uma ave; a cabeça calva, o pescoço magro, o nariz proeminente e caído, lembram um abutre. Aquele nariz de foice parece arrastar o corpo para a frente, deslocar-lhe o centro de gravidade e causar a Plattner uma sensação constante de desequilíbrio, cujo constrangimento se transmite ao interlocutor. Só depois de se estar habituado a essa fealdade é que se lhe nota a ingenuidade do olhar, a cordialidade do sorriso, a doçura de uma voz um pouco arrastada, facilmente comovida, onde freme a todo o instante como que uma oferta de amizade. Mas Jacques não sabe o que fazer de um novo amigo. Já não precisa de ninguém.
Plattner está arrasado. Acaba de receber a confirmação da votação dos créditos de guerra, no Reichstag, pela fracção parlamentar dos social-democratas.
 - O voto dos socialistas franceses, na Câmara, já é um golpe terrível - confessa ele, numa voz que treme de indignação. - Mas esperava-se mais ou menos isto, apesar de tudo, depois do assassínio de Jaurés... Mas os alemães! A nossa social-democracia, a grande força proletária da Europa!... Este é o mais duro golpe de toda a minha vida de militante!... Recusara-me a acreditar nos jornais oficiais. Poria a mão no fogo como os social-democratas se empenhariam todos em infligir uma condenação pública ao governo imperial. Quando li a nota da agência, pus-me a rir! Aquilo cheirava a mentira, a manobra! Eu pensava: "Amanhã teremos o desmentido!" E aí está. Hoje temos de nos render à evidência. Tudo é exacto, sinistramente exacto!... Ainda não sei bem como as coisas se passaram, nos bastidores. Talvez nunca se conheça a verdade... Rayer julga que Berthmann-Hollweg teria convocado Sudekum, em 29, para obter dele que a social-democracia cessasse a oposição...
 - A 29? - interrogou Jacques. - Mas, a 29, em Bruxelas, o discurso de Haase!... Eu estava lá! Ouvi!
 - É possível. Rayer afirma que quando a delegação alemã regressou a Berlim, o comité director tinha-se reunido, e a submissão estava consumada: o Kaiser sabia que podia decretar a mobilização; que não haveria sublevação, que não haveria greve geral!... Deve ter havido uma reunião do Partido, em sessão secreta, antes do voto no Reichstag e a coisa não deve ter sido assim tão simples! Recuso-me ainda a duvidar de indivíduos como Liebknecht, como Ledebour, como Mehring, como Clara Zetkin, como Rosa Luxemburgo! A questão é que eles devem ter ficado em minoria: tiveram de inclinar-se ante os traidores... E os factos: eles votaram pró! Trinta anos de esforços, trinta anos de lutas, de lentas e difíceis conquistas, anulados por um voto! Num dia, a Social-Democracia perde para sempre a estima do mundo proletário... Na Duma, ao menos, os socialistas russos fizeram frente ao tzarismo! Todos votaram contra a guerra! E na Sérvia também! Vi a cópia de uma carta de Douchan Popovitch: a oposição socialista sérvia continua indomável. O único país, contudo, onde o patriotismo da defesa nacional seria de certo modo desculpável!... Mesmo na Inglaterra, a resistência é obstinada: Keir-Hardie não ensarilha armas. Tenho aqui o último número do Independent Labour Party. De qualquer modo isto é reconfortante, não achas? Não devemos desesperar. Faremos que nos oiçam, pouco a pouco. Não conseguirão calar-nos a todos. Aguentar, apesar de tudo e contra tudo! A Internacional renascerá! E nesse dia, pedirá contas àqueles em que depositava confiança e que a ditadura imperialista teve tanta facilidade em domesticar!

( "Os Thibault", de Roger Martin Du Gard, Edição "Livros do Brasil" Lisboa, volume III)
 

1 comentário:

cid simoes disse...

Roger Martin Du Gard, comunista e Prémio Nobel de 1937. Não esquecer também "O Drama de João Barois".