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domingo, 30 de agosto de 2009

Lénine, o leninismo e a actualidade (III)


Com este texto (III) vamos concluir estas incursões no conteúdo do "Que Fazer?", escrito por Lénine e publicado no distante ano de 1902. As transcrições agora seleccionadas, sendo as seguintes na sequência do próprio texto, abordam os problemas de uma política justa para a organização e as lutas dos operários, tratando detalhadamente o combate travado entre a orientação sindical/espontaneísta, defendida por aqueles que entendiam ser desnecessária a direcção política do movimento operário, e a orientação defendida pela linha revolucionária do partido, encabeçada por Lénine.

A atenção prioritária dada à organização e à actividade dos comunistas entre os operários - justificada pela sua situação particular e única no processo produtivo capitalista - foi sempre uma orientação central no pensamento e na actividade revolucionária do partido criado sob a direcção das ideias de Lénine. Perdoem-me os leitores o "desvio" mas penso valer bem a pena abrirmos um rápido parênteses, para mencionar um outro texto seu, igualmente datado nos primórdios das suas tentativas de criação de um "partido de novo tipo". Trata-se do texto intitulado "Carta a um camarada", datado de Setembro do mesmo ano (1902) e do qual transcrevo as duas passagens seguintes :


"Primeiramente assinalarei a minha completa concordância com a sua explicação sobre a inutilidade da organização anterior da "União" ("de círculos", como a denomina). Você chama a atenção para a ausência de uma séria preparação e de uma educação revolucionária entre os operários de vanguarda, para o assim chamado sistema eleitoral tão orgulhosa e veementemente defendido pelos membros do 'Rabotchéie Diélo' em nome dos princípios "democráticos" e, a alienação dos operários de todo trabalho activo.
Trata-se exactamente disso: 1) a ausência de uma preparação séria e de uma educação revolucionária (não somente entre os operários, como também entre os intelectuais); 2) a utilização inadequada e excessiva do princípio eleitoral; e 3) o afastamento dos operários da verdadeira actividade revolucionária. Neste ponto, encontra-se o principal defeito, não somente da organização em São Petersburgo, mas também de muitas outras organizações locais de nosso partido."


Mais à frente, e depois de tratar aspectos gerais da estruturação orgânica do partido a criar, passa a desenvolver detalhada e demoradamente como deve ser criada a organização dos operários nos seus locais de trabalho:


"Passemos agora aos círculos de fábrica. Estes são particularmente importantes para nós; já que a força fundamental do movimento reside no grau de organização dos operários das grandes fábricas, nas quais se concentra a parte mais importante da classe operária, não só quanto ao número como também por sua influência, grau de desenvolvimento e capacidade de luta. Cada fábrica deverá ser para nós uma fortaleza. E, para isso, a organização operária "de fábrica" deverá ser tão conspirativa em seu interior, quanto "ramificada" no seu exterior, isto é, nas suas relações externas deverá levar seus tentáculos tão longe e nas mais diferentes direcções, quanto qualquer outra organização revolucionária. Saliento que o núcleo dirigente deverá ser também aqui, obrigatoriamente, o grupo de operários revolucionários. Deveremos romper radicalmente com a tradição tipicamente operária ou de tipo profissional das organizações social democratas, inclusive com aquela dos "círculos de fábrica". O grupo ou comité de fábrica (com o fim de separá-lo de outros grupos, os quais devem ser inúmeros) deverá ser composto de um reduzido número de revolucionários, encarregados directamente pelo comité, e com plenos poderes para dirigir todo o trabalho social-democrata na fábrica. Todos os membros do comité de fábrica deverão ser considerados como agentes do comité, obrigados a submeterem-se a todas as suas decisões e a observarem todas as "leis e costumes" deste "exército em campanha" ao qual se filiaram e do qual não têm o direito de sair em tempo de guerra, sem a permissão do comando. Por isso, a composição do comité de fábrica tem um grande significado, tanto que uma das principais preocupações do comité de fábrica deverá ser a de criar correctamente os subcomitês. Penso que isso deverá ser assim: o comité designará alguns de seus membros (mais algumas pessoas entre os operários que não façam parte do comité por quaisquer razões, mas capazes de ser úteis por sua experiência, seu conhecimento sobre as pessoas, sua inteligência ou suas relações) para organizar em todas as partes os subcomitês de fábrica."


Hoje, ao ler estas linhas, quem não reconhecerá nelas traços essenciais de uma justa orientação, e, o carácter prioritário e essencial para a organização de um partido comunista - as suas células de empresa? Evidentemente, todos podemos constatar a semelhança.


Daquela época para o presente, muito se evoluiu na criação destas organizações de base verdadeiramente decisivas, bem como na consolidação das regras organizativas para as células de empresa. As células de empresa (ou de local de trabalho), constituem a vanguarda política dos destacamentos mais avançados e combativos do proletariado na luta de classes, indispensáveis e insubstituíveis na actividade geral de um partido revolucionário.


Nos nossos dias, a questão é aplicá-las, levá-las à prática, de forma perseverante, determinada e consequente.


Após esta incursão, que funciona como nota introdutória , retomemos agora a leitura dos excertos seleccionados do "Que Fazer?", todos eles relacionados com este mesmo tema, cujo estudo é indispensável na formação teórica e na prática política dos comunistas, qualquer que seja a sua localização geográfica, a sua área de actividade política, a sua tarefa.



"Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta só podia chegar até eles a partir de fora. A história de todos os países atesta que, pela próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. Quanto à doutrina socialista, nasceu das teorias filosóficas, históricas, económicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais. Os fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, pertenciam eles próprios, pela sua situação social, aos intelectuais burgueses. Da mesma forma, na Rússia, a doutrina teórica da social-democracia surgiu de maneira completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário; foi o resultado natural, inevitável, do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas. Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Não seria demasiado insistir sobre essa ideia, numa época onde o entusiasmo pelas formas mais limitadas da ação prática aparece acompanhado pela propaganda em voga do oportunismo."


"Isto mostra (o que não pode chegar a compreender o 'Rabótcheie Dielo'), que todo o culto da espontaneidade do movimento operário, toda a diminuição do papel do "elemento consciente", do papel da social-democracia significa - quer se queira ou não - um reforço da influência da ideologia burguesa sobre os operários. Todos aqueles que falam de "sobrestimação da ideologia", de exagero do papel do elemento consciente etc., imaginam que o movimento puramente operário é, por si próprio, capaz de elaborar, e irá elaborar para si, uma ideologia independente, com a única condição de que os operários 'arranquem sua sorte das mãos de seus dirigentes'."


"No momento, não seria possível falar de uma ideologia independente, elaborada pelas próprias massas operárias no curso do seu movimento, o problema coloca-se exclusivamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio-termo (pois a humanidade não elaborou uma "terceira" ideologia; e, além disso, em uma sociedade dilacerada pelos antagonismos de classe não seria possível existir uma ideologia à margem ou acima dessas classes). Por isso, toda diminuição da ideologia socialista, todo distanciamento dela implica o fortalecimento da ideologia burguesa. Fala-se de espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário resulta justamente na subordinação à ideologia burguesa, efectua-se justamente segundo o programa do "Credo", pois o movimento operário espontâneo é o sindicalismo, a Nur-Gewerkschafilerei: ora, o sindicalismo é justamente a escravidão ideológica dos operários pela burguesia. Por isso, a nossa tarefa, a da social-democracia, é combater a espontaneidade, desviar o movimento operário dessa tendência espontânea que apresenta o sindicalismo para se refugiar sob as asas da burguesia, e atraí-lo para a social-democracia revolucionária."


"Constatamos, assim, que o erro fundamental da "nova tendência" da social-democracia russa é inclinar-se diante da espontaneidade; é não compreender que a espontaneidade da massa exige de nós, sociais-democratas, uma consciência elevada. Quanto maior for o impulso espontâneo das massas, mais amplo será o movimento, e de forma ainda mais rápida afirmar-se-á a necessidade de uma consciência elevada no trabalho teórico, político e de organização da social-democracia. O impulso espontâneo das massas na Rússia foi (e continua a ser) tão rápido que a juventude social-democrata encontrou-se pouco preparada para realizar essas imensas tarefas. A falta de preparação, nossa infelicidade comum, constituí a infelicidade de todos os sociais-democratas russos. O impulso das massas não cessou de crescer e de se estender sem solução de continuidade; e longe de interromper-se onde foi iniciado, estendeu-se a novas localidades, a novas camadas da população (o movimento operário provocou um redobramento da efervescência entre a juventude das escolas, dos intelectuais em geral, e mesmo entre os camponeses). Os revolucionários atrasaram-se quanto à progressão do movimento, e em suas "teorias" e actividade, não souberam criar uma organização que funcionasse sem solução de continuidade, capaz de dirigir todo o movimento.


Vejamos ainda , a terminar estas transcrições escolhidas, algumas notas de Lénine ao seu texto.


"Naturalmente, isto [falar de uma ideologia independente, elaborada pelas próprias massas operárias no curso de seu movimento] não significa que os operários não participem dessa elaboração. Mas não participam na qualidade de operários, participam como teóricos do socialismo, como os Proudhon e os Weitling; em outras palavras, não participam senão na medida em que conseguem adquirir os conhecimento mais ou menos perfeitos da sua época, e fazê-los progredir. E para que os operários o consigam com maior frequência, é preciso esforçar-se o mais possível para elevar o nível da consciência dos operários em geral; é preciso que não se limitem ao quadro artificialmente restrito da "literatura para operários", mas que saibam assimilar cada vez melhor a literatura para todos. Seria mesmo mais exacto dizer, em lugar de "se limitem", não sejam limitadas, porque os próprios operários lêem e desejariam ler tudo o que se escreve também para os intelectuais: somente alguns intelectuais (deploráveis) pensam que é suficiente falar "aos operários" da vida da fábrica e repisar aquilo que eles já sabem há muito tempo."


Diz-se frequentemente: a classe operária vai espontâneamente para o socialismo. Isto é perfeitamente justo no sentido de que, mais profunda e exactamente que as outras, a teoria socialista determina as causas dos males da classe operária: é por isso que os operários assimilam-na com tanta facilidade, desde que esta teoria não capitule, ela própria, diante da espontaneidade, desde que se submeta a essa espontaneidade. Isto está, em geral, subentendido, mas o Rabótcheie Dielo esquece-se precisamente desse subentendido, ou deturpa-o. A classe operária vai espontâneamente para o socialismo, mas a ideologia burguesa mais difundida (e constantemente ressuscitada sob as mais variadas formas) é, porém, aquela que mais se impõe espontâneamente, sobretudo ao operário."


"O Rabótcheie Dielo, tal como os autores da cantata economista, no número 12 do Iskra, deveriam "perguntar-se por que os acontecimentos da primavera provocaram uma tal reanimação das tendências revolucionárias não sociais-democratas, em lugar de reforçar a autoridade e o prestígio da social-democracia". A razão é que não estávamos à altura de nossa tarefa, que a actividade das massas operárias ultrapassou a nossa, que não tínhamos dirigentes e organizadores suficientemente preparados, que conhecessem perfeitamente o estado de espírito de todas as camadas da oposição e soubessem colocar-se à cabeça do movimento, transformar uma manifestação espontânea em manifestação política, ampliar-lhe o carácter político etc. Dessa forma, os revolucionários não sociais-democratas, mais desembaraçados, mais enérgicos, explorarão necessariamente nosso atraso, e os operários, por maior que seja sua energia e abnegação nos combates contra a polícia e contra as tropas, por mais revolucionária que seja sua ação, serão apenas uma força de sustentação desses revolucionários, a retaguarda de democracia burguesa, e não a vanguarda social-democrata."





Desta vez, neste terceiro post e propositadamente, as transcrições feitas estão seguidas e sem apontamentos sobre o conteúdo de cada uma delas. Manter o encadeamento das ideias originais, presentes em cada período transcrito, pareceu-me o mais apropriado, a forma mais útil para uma boa compreensão das ideias de Lénine, da sua fundamentação e dos seus objectivos.


Numerosos e diversificados são actualmente as linhas de diversão e dessoramento ideológico. Práticas sindicais economicistas, orientadas pela errónea ideia da "independência política" dos sindicalistas, tão cara à colaboração de classes desejada pelo patronato explorador; defesas variadas de um espontaneismo de massas que, fingindo valorizar as lutas e a componente espontânea que contêm, visam impedir a ligação dos movimentos à teoria marxista-leninista e ao seu papel simultaneamente guia e integrador, numa linha geral contra o sistema; recusa da intervenção política "dos partidos", aparentando a defesa da unidade dos movimentos de massas, como máscara para ocultar o propósito de tudo fazerem para isolá-los do partido comunista, afinal o único alvo deste falso"unitarismo" ; rejeição activa e multifacetada, pelas ideias e práticas reformistas, da necessidade de uma construção teórica independente e de classe, de uma teoria revolucionária e de uma ideologia que, a partir de fora e transformando a "classe em si" na "classe para si", seja um guião das lutas da classe operária, tornando-as políticamente consequentes. Enfim, numerosas são as "pontes" que podemos realizar entre este texto de Lénine e a actualidade.


Lidas/relidas hoje, com o leitor buscando apreender o que contêm de universal, atento à sua cuidada transposição para as realidades presentes, julgo que as ideias leninistas preservaram toda a frescura e potencial educativo e transformador no nosso próprio mundo contemporâneo.

No embate geral de classes, muitas são na actualidade as teses defendendo existir, por parte dos revolucionários, um excesso de actividade teórica, uma excessiva valorização dos factores subjectivos. Muitos são os que, até citando os clássicos do marxismo - deturpando e falseando o seu pensamento -, visam persuadir os mais incautos da errónea ideia que só contam "as condições objectivas", ocultando que a acção teórica conduz a acção prática e que entre as ideologias da burguesia e do proletariado não existe espaço para "terceiras vias". Perante estes "teóricos", defensores da inutilidade/incapacidade dos operários aprenderem e usarem a teoria, as palavras de Lénine, num dos trechos transcritos acima, surgem-nos luminosas e reconfortantes. Vale a pena repeti-las:


"Seria mesmo mais exacto dizer, em lugar de 'se limitem', não sejam limitadas, porque os próprios operários lêem e desejariam ler tudo o que se escreve também para os intelectuais: somente alguns intelectuais (deploráveis) pensam que é suficiente falar "aos operários" da vida da fábrica e repisar aquilo que eles já sabem há muito tempo."


Tal como Lénine na sua época testemunhou, com claro sentido crítico e auto-crítico, também nós hoje devemos afirmar que temos pela frente um vasto trabalho de investigação e formulação teórica. Sempre firmemente ancorados na nossa própria ideologia de classe, usando esse poderoso instrumento interpretativo da realidade a que damos o nome de marxismo-leninismo, enriquecendo o seu conjunto de teorias e vencendo os nossos próprios atrasos.





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