SÓ NÃO SE ENGANA QUEM CEDE AO MEDO DE CAMINHAR NO DESCONHECIDO - SÓ SE PERDE AQUELE QUE NÃO ESTÁ SEGURO DO RUMO QUE ESCOLHEU.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Haiti - Um povo lutador e martirizado

As imagens feitas por um amador pouco após o terramoto e ontem transmitidas pelas cadeias de TV, mostrando de um ponto elevado uma panorâmica da cidade de Port-au-Prince, à primeira vista sugeriam serem nuvens a cobertura nebulosa que se via pairando sobre toda a extensão da cidade, mas não era assim, não eram nuvens reais e sim uma pavorosa nuvem de poeira compacta, originada pela derrocada de grande parte das edificações da cidade, acabadas de cair pelo impacto do sismo.
Depois de sofrer a devastação de violentos tufões, a terrível catástrofe natural que agora atingiu o país vem chamar a nossa atenção para as duras realidades que já há muito atingem o seu martirizado povo haitiano, um povo alegre, animoso, lutador incansável pela sua independência e pela sua dignidade mas tão martirizado pelas agressões e ocupações estrangeiras, pela exploração desenfreada dos seus recursos, sucessivamente praticadas pelas potências neocoloniais e pelo imperialismo.


Originariamente chamada "La Hispaniola", a ilha foi colónia de Espanha desde a sua "descoberta" por Cristóvão Colombo (em 1492) até que, explorando a decadência da colonização espanhola, os franceses substituem os espanhóis na parte ocidental da ilha (1697) e, em resultado desta disputa franco-espanhola, pouco após a declaração da independência de França (1804) a ilha é dividida em dois territórios, com a parte até aí sob domínio francês a dar origem à actual República do Haiti e a parte oriental, entretanto reocupada e sob domínio espanhol, a obter mais tarde também a independência, sob a designação de República Dominicana. Com uma superfície total de 76.192 km² e cerca de 9 milhões de habitantes, a ilha conta 641 quilómetros de extensão entre os seus pontos extremos.
Para além da população indígena índia, objecto da escravização pelos espanhóis e depois de quase ter sido totalmente dizimada, o Haiti tem uma população maioritária descendente de africanos escravizados pelos colonialistas. Ao começar a Revolução Francesa (1789), já viviam na colónia francesa cerca de 500 mil negros, 24 mil mestiços e 32 mil brancos.
Possuindo terrenos muito férteis, a sua produção de açúcar chegou a disputar a hegemonia açucareira do Brasil, para além de produzir milho, café, cacau, todo o tipo de produtos hortícolas e frutícolas, etc, além de um litoral e de montanhas lindíssimos, com as belezas naturais típicas das ilhas do Caribe.

Detentor do honroso título de primeiro país independente da América do Sul colonial - uma independência conquistada após sucessivas revoltas e lutas da sua população escravizada, mobilizada pelo objectivo de conquistar a liberdade contra os colonizadores, primeiro contra os espanhóis e depois contra os franceses -, os duzentos anos da sua independência são uma inenarrável epopeia de lutas e combates, de traições e de vitórias, de resistência e de determinação de um povo corajoso, constantemente forçado a retomar as suas lutas, primeiro pela abolição da escravatura, depois pela soberania e pelo seu direito a viver em paz.
Abandonado e exorcizado pelas potências colonialistas logo que declarou a sua independência política - que assim queriam fazer do Haiti um mau exemplo que os outros povos colonizados não deviam seguir - o seu povo teve de batalhar sempre e até os dias de hoje para ser senhor do seu distino, das suas riquezas e das suas enormes potencialidades naturais, contra o poder e a exploração das elites possidentes, representadas inicialmente por governadores-gerais colonialistas, depois por líderes independentistas auto-proclamados imperadores e mais tarde por presidentes, uns designados outros eleitos, uns patriotas outros fantoches na mão das potências imperialistas.

De um passado recente de repressão, de prisões, torturas e milhares de assassinatos, quem não lembra o terrível período da ditadura do "Papa Doc" e dos seus sicários torturadores, os "tontons macoutes"? Instaurada em 1957, pelo médico François Duvalier, um ditador sanguinário, seguidor das práticas do culto "vudu" que, não satisfeito por se declarar presidente vitalício do Haiti, antes de morrer (1971) designou o filho seu sucessor ("Baby Doc"), e com esta manobra prolongou esse negro período até 1986, submetendo o povo haitiano, durante quase três décadas, a uma das mais cruéis ditaduras da História do século XX. Entidades humanitárias apontam para 30.000 mortos, vítimas das sucessivas chacinas de militantes e activistas de esquerda, tendo sempre por alvo principal os comunistas.

A sujeição do Haiti aos ditames do imperialismo estadunidense é um longo e criminoso processo. Manietado economicamente, o Haiti entra no século passado sob a tutela dos EUA e estes, a pretexto de garantirem a cobrança da dívida dos "empréstimos" concedidos, passam a intervir directamente na administração do país. Em 1905, passam a controlar as alfândegas (!) e, em 1915, invadiram militarmente a ilha e assumiram o governo. Os americanos impuseram uma nova constituição - "hábito" este, aliás, que não mais abandonaram até hoje, em todos os países por si ocupados. Esta ocupação militar vai durar até 1934 e só em 1941 abdicaram da administração alfandegária haitiana, tudo a bem da "democracy Made in USA", claro!
Seguiram-se sucessivos governos da elite, sucessivos golpes e defecções, o longo - e dramaticamente penoso - período da ditadura dos Duvalier's e, após quatro anos de governo dos militares, têm finalmente lugar eleições presidenciais (1990), sendo eleito um padre, Jean-Bertrand Aristide, que se afirma defensor da "teologia da libertação", com dois terços dos votos contados. Derrubado por um golpe (mais um!) oito meses depois, exila-se... nos EUA.
Em Setembro de 1994, uma "força multinacional", liderada pelos EUA, entrou no Haiti para reempossar Aristide. Até 2000, o mandato de Aristide é uma sucessão de crises e, neste ano, a oposição das elites acusa-o de fraude nas eleições realizadas, passando em 2003 a reclamar a sua renúncia. Em 2004 estalam confrontos armados na capital, provocados por milícias da direita, e os EUA intervêm de novo com as suas tropas, depondo Aristide e enviando-o para o exílio, mas desta vez para um país africano... São mandatados pela ONU (de novo, sempre eles!) para comandar mais uma "força multinacional" de intervenção, destinada a restabelecer as sacrossantas "ordem e autoridade". Cedendo esse papel aos militares brasileiros, desde então o Haiti vive, mais uma vez na sofrida história do seu povo, sob ocupação de forças militares estrangeiras ao serviço de uma inalterada estratégia imperialista. O presidente actual é René Préval, um dissidente do partido de Aristide, eleito em 2006 com o apoio da muito conveniente "comunidade internacional"/versus EUA.
O infernal ciclo de dependência e submissão haitiana face aos EUA vai prolongar-se até aos nossos dias. Com um cortejo dramático de todo o tipo de carências que continua, ininterruptamente, a flagelar as populações deste martirizado país. A corrupção do poder campeia; a miséria extrema e a fome fustigam mais de 90% do povo haitiano; a total inexistência de infra-estruturas essenciais - o Haiti possui somente 1.000 km de estradas asfaltadas -, deixa as populações sem meios de vivência minimamente civilizados; a completa carência de serviços sociais e de organismos de gestão económica dos recursos do país, remete os haitianos para um dos últimos lugares entre os países mais subdesenvolvidos.
Um facto chocante, recentemente relatado por militares brasileiros: o povo haitiano, procurando sobreviver contra a fome, come "biscoitos" de lama, feitos com barro, misturado com açúcar ou sal, gordura ou margarina, ou algum vegetal! E ao invés de fornos, a massa resultante é seca ao Sol, na rua. Estas práticas de sobrevivência, que nos envergonham a todos nós, humanos, e que remetem grande parte do povo do Haiti para um estádio social "pré-histórico" -, não nos enganemos, não são do pós-terramoto; são do seu dia-a-dia, anterior ao cataclismo que agora o vitimou.
Nestes dias de caos instalado no país, com um "governo" totalmente inepto e corrupto - a revelar a manifesta fraude da gestão da ONU, que em seis anos nada foi capaz de realizar para apoiar de facto aquele povo, desde sempre colocado sob suspeita - nestes dias dramáticos para o martirizado povo haitiano, os meios de comunicação mundiais divulgam doações financeiras, entregas de géneros alimentares, tendas, cobertores, água, noticiam sucessivos embarques e chegadas ao Haiti de equipas de resgate e apoio aos sobreviventes do violento sismo. Tudo o que for enviado e feito nunca será demasiado.
Mas, infelizmente, em tempos de alargada solidariedade internacional misturam-se e confundem-se atitudes muito distintas, desde a hipócrita oferta de ajuda pelos maiores responsáveis pela anterior e continuada miséria do povo haitiano - os EUA -, desde entidades empresariais que, qual corvos em torno de cadáveres, sempre surgem prontas a ganhar rios de dinheiro com as verbas para a "reconstrução", até às solidárias e desinteressadas ajudas de alguns poucos governos, instituições e pessoas como nós, verdadeiramente amigos dos haitianos, procurando formas de apoio e de solidariedade que façam sentir ao povo mártir do Haiti que tem amigos, que não está só perante a catástrofe destes dias, que os seus amigos (por vezes dele esquecidos, por vezes distantes) sempre estiveram ao seu lado e agora tudo irão fazer para dele ficarem mais próximos, mais unidos pelos fraternos e indestrutíveis laços da solidariedade internacionalista.
A nós, aos trabalhadores, aos revolucionários, aos democratas sinceros e anti-imperialistas, cabe-nos desenvolver as nossas campanhas de solidariedade sincera, tanto política como material quanto possível, ao mesmo tempo que temos o dever de desmascarar o imperialismo e as suas sujas manobras - fartamente veiculadas pela imprensa dominante que o serve -, manobras e propaganda que visam manifestamente manipular os genuínos sentimentos de compaixão e de apoio, hoje sentidos pela generalidade dos povos em todo o mundo.
Adenda:
O desembarque ontem (16/1) no Haiti, de um maciço efectivo militar dos EUA - 10.000 homens! -, ocupando o aeroporto e assumindo praticamente todos os poderes, vem confirmar de forma eloquente os verdadeiros propósitos do imperialismo estadunidense. Acabados de chegar, impõem a proibição de aterrar no aeroporto de Port-au-Prince a um avião francês, que transportava um hospital de campanha e equipas médicas , não obstante todas as diligências diplomáticas do governo francês que, após ser obrigado a alterar a rota do seu avião de transporte para a República Dominicana, acabou por decidir divulgar uma nota pública de crítica à arrogância e prepotência do governo dos EUA. E tudo isto se passa nestas horas dramáticas, onde um socorro pode decidir vidas humanas. E é isto que é propagandeado como o "apoio" do país-modelo, da "terra da liberdade e da democracia"...

3 comentários:

Jorge disse...

Magnífico texto ! a nós só nos resta de facto, denunciar o imperialismo e as suas sujas manobras ! muito bem !

Grande abraço!

Fernando Samuel disse...

Muito bom. Chama-se a isto pôr os pontos nos iii...

abraço.

A CHISPA ! disse...

Caro Filipe
Penso que o seu texto devia aprofundar o papel destinado ao exercito brasileiro,como força ocupante e repressora do povo do Haiti, como também denunciar o papel de lacaio do governo brasileiro,no cumprimento de ordens do patrão Norte Americano.
No entanto no seu conjunto, trata-se de um texto excelente,aliás como muitos outros produzidos por si.
Saudações Comunistas

A "achispavermelha.blogspot.com" públicou um texto, de homenagem ao 18 de Janeiro de 1934, por se tratar de um dos momentos mais altos da luta do proletariado português, gostariamos que nos visita-se e desse a sua opinião.

"A CHISPA!"