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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Álvaro Cunhal: O testemunho revolucionário de um jovem comunista aos 26 anos

Um Problema de Consciência 

O exterior parece terrivelmente inimigo. como se nas ruas só passassem funerais. Como se nos roubassem a família, os amigos e quedássemos sós e desamparados.A tragédia intensa do presente emprenha a visão do futuro de sombrias expectativas. Afigura-se a muitos que no futuro haverá sempre rostos empalidecidos e cheiro a pólvora e a sangue quente. Ontem parecia que o dia de hoje havia de ser risonho e acolhedor. E agora, agora, que grande serenidade para poder crer no dia de amanhã!
Quando a vida é incerta e baila ante os homens a perspectiva da morte, inunda-os uma ansiedade traduzível assim: «irei tão cedo deixar de ser?»
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A admissão da estabilidade de um mundo a que se não podem mostrar os corações, força a lançar rápido e iluminado olhar ao tempo em que se esperou, em que os ora desalentados ainda tinham fé no que hoje não é presente e então parecia vir a ser futuro. Uma derrota profunda e dorida leva muitos a pensar que haverá sempre e só derrotas. Ver morrer os outros vencidos; talvez também morrer vencido. No vasto mundo muitas vezes se apagam vidas, ao procurarem derrubar velhos e endurecidos troncos. E há sempre quem represente o papel de irmão desalentado: «Para quê viver? Coisas que sempre foram e hão-de ser... O homem vive encadeado a leis irresistíveis. Inúteis os sacrifícios dos que procuram modificar os seus ditames». Como se os homens não pudessem construir a sua própria história. Como se as leis da evolução das sociedades não reservassem lugar à vontade humana.
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Por isso, aqueles que acreditaram e não crêem fogem, afastam-se, renunciam. Por isso também há homens que projectam a sua existência para além da morte. Uma alma que voe para rumo extra-terreno. Ou um ser que se desintegra para subsistir integrado em novos seres. Qualquer coisa que justifique o caminho percorrido entre o nascimento e a morte. Sonha-se para fora da terra com uma vida que nesta se não tem. Ou sonha-se com o que fica...
A morte é elemento essencial da vida. Mas isso não basta para que se aceite sem mágoa. É que a pergunta: «deixarei de ser hoje? amanhã?» — intensifica e aproxima o grande problema de consciência: «O que andei por cá fazendo? Que fica sobre a terra da minha passagem sobre a terra?»
Não satisfaz uma vida além-túmulo, mesmo que a imaginação empreste à alma asas imateriais. É esta terra donde brotou o pão que manteve o corpo e a água que matou a sede, esta terra donde tudo (mesmo pouco) nos veio e para onde iremos — e é esta humanidade a que pertencemos, este grande colectivo a que nos liga o sangue, o amor, o ódio e a interdependência — é esta terra e esta humanidade que nos exigem uma explicação.
(...)
Quando a perspectiva da morte ou dum futuro trágico baila ante todos, até os jovens, como os velhos, olham o passado. E, depois, quantas vezes o desinteresse e a renúncia não vêm juntar a uma derrota ou a um momentâneo recuo colectivo, uma irremissível derrota individual.
Porém, quando assim se não voga ao sabor da corrente, mas antes se escolhe caminho e se marcha, novamente o futuro sorri, à nossa vida ou à nossa morte. Sorri porque nele se adivinham marcadas as acções que vão ser praticadas. Porque a nossa vitalidade é afinal a direcção do que vem. Porque se ganha confiança na perpetuidade dos nossos actos. Subsiste a alma? O apodrecimento e desintegração é a última étape? Que interessa isso, se ganhámos uma nova eternidade!
Enquanto a humanidade for humanidade, as acções que hoje praticamos estarão sempre presentes, resistindo ao tempo e ao esquecimento a que nos votarão os nossos netos. Já os nossos corpos terão perdido a forma humana, já as suas partículas viverão separadas e dispersas e ainda nas sociedades futuras os efeitos dos efeitos das nossas acções evocarão a nossa passada existência. Com esta concepção, sentimo-nos (hoje) obreiros anónimos do futuro. Ao problema da morte, do não ser, responde satisfatoriamente a certeza consoladora deste prolongamento da nossa existência. Se se pudesse falar em eternidade, esta seria a única eternidade da nossa vida, como seres pensantes e voluntariosos.
Por isso, quanto mais sorridente é a visão do mundo que fica, quanto mais funda é a consciência de que tudo se fez para deixar aos filhos valiosa herança, menos dura e menos brutal aparece a visão da morte.
Não se trata de olhar para trás e perguntar com angústia: «que fiz? que fiz?» Trata-se de olhar em frente e perguntar com confiança e serenidade: «que poderei ainda fazer?» Não é só um exame de consciência que urge fazer: é também um apelo à consciência!
(...)
Num mundo em que não há risos sem lágrimas, a felicidade nunca pode ser uma situação com caracteres próprios e momentâneos. A felicidade não pode existir, não existe, como situação particular: nem quando dependente de factos estranhos à própria vontade; nem como ideia abstracta. A felicidade só pode existir como um atributo de toda uma vida. Só a satisfação pela vida que se vive poderá tornar feliz. Há então que não subordinar as acções ao alcance dum prazer. Mas antes amoldar a ideia de felicidade à vida que se vive.

(...)
Se a felicidade é dada pela satisfação da linha de conduta, pela satisfação de que se procede bem, nada, nada, nem os gritos da própria carne esfacelada, nem lágrimas de emoção, nem a revolta instante e desesperada, pode destruí-la. Porque, acima dos próprio gritos, das próprias lágrimas, do próprio desespero, fica sempre a certeza duma vida voluntariosa e independente ou – se se preferir a expressão – recta, leal, digna.
Então suporta-se a dor e ama-se a vida. Podem as leis da natureza esfrangalhar o corpo. Podem os órgãos começar cansando. E as pernas vergando de fadiga. Amortecendo-se a percepção. O corpo começar em vida o seu desagregamento. Poderá bailar ante os olhos a perspectiva da morte e o fim surgir num amanhã irremissível.
E haverá sempre vontade de continuar, procedendo sempre e sempre duma forma escolhida, marchando sempre para um destino humano e uma missão terrena voluntariosamente traçada. Haverá sempre anseio de continuidade e aperfeiçoamento.
Atravessar-se-ão tragédias com lágrimas nos olhos, um sorriso nos lábios e uma fé nos peitos.

Álvaro Cunhal, 1939, in "O Diabo"

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