SÓ NÃO SE ENGANA QUEM CEDE AO MEDO DE CAMINHAR NO DESCONHECIDO - SÓ SE PERDE AQUELE QUE NÃO ESTÁ SEGURO DO RUMO QUE ESCOLHEU.

domingo, 11 de julho de 2010

Haverá algum engano na data (ou no país)?…


“Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (...)
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro (...)

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre, como da roda duma lotaria


A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.(...)”
Por momentos, o texto reproduzido acima parece saído da actualidade social e política nacional portuguesa, visando descrever a desgraçada situação em que estão mergulhados o país e o povo (com alguma imaginação, até dá para o pensar adequado a algumas outras realidades nacionais pelo mundo...). Mas não é. Se o fosse teria que, no mínimo, espelhar também as lutas que vêm sendo travadas pelos trabalhadores portugueses, em oposição consciente e firme às políticas que têm conduzido o país para um completo desastre - económico, social, político, civilizacional.
Uma leitura mais atenta, logo no primeiro parágrafo, pelo estilo e pela descrição figurativa das duras penas suportadas pelo povo, revela que se trata de um texto de outra época da História portuguesa, datado de um período (segunda metade do século XIX) no qual era comum, para certos autores, identificar o povo português com um jumento. Aliás, nesta concepção se revelava a origem pequeno burguesa – e de alguns, mesmo da grande burguesia – destes autores.

No presente caso e transcrição, trata-se de parte de um escrito de Guerra Junqueiro, “Pátria”, com a provecta idade de 114 anos! Para além da avaliação surpreendentemente actual de vários traços da vida colectiva dos portugueses, devemos valorizar muito a afirmação do escritor quanto ao amor que tem pelo seu povo, não obstante parecer acompanhar a resignação deste perante as adversidades (“porque sofre e é bom”) como se isto fosse uma qualidade e além do mais uma avaliação errada para caracterizar os dias de hoje, razão pela qual não pudemos/devemos acompanhá-lo.

Quanto ao mais, está tudo certo: um povo explorado e humilhado e ainda não capacitado para se revoltar contra o actual estado de coisas; uma burguesia venial, corrupta e corruptora, criminosamente predadora das riquezas nacionais e vendilhona da dignidade nacional dos portugueses; um parlamento capacho para todas as diatríbes do governo, aprovando caninamente as suas piores patifarias; um governo lacaio dos grandes grupos económicos e dos banqueiros e pau-mandado do absolutismo do 1°. ministro; uma justiça burguesa, sem venda nos olhos e com uma balança para medir o peso do dinheiro dos litigantes, traindo o exercício dos direitos elementares de quem trabalha para servir os poderosos e o poder; dois partidos (na verdade, são três), iguais como duas gotas – de fel! -, quais “Dupond & Dupond” que só não se fundem num só pela necessidade de continuarem a fingirem-se diferentes partilhando a mesmíssima política, exercendo ambos e à vez o governo há já 34 penosos anos, anos estes integralmente preenchidos pela política contra-revolucionária e de recuperação capitalista que, contra a resistência popular, visa unicamente recuperar os ilegítimos interesses e benesses daqueles contra os quais se fez Abril, partidos sem uma única ideia ou medida – uma única! – que pudesse destinar-se a assegurar o desenvolvimento do país e o bem-estar dos portugueses.

Enfim, um retrato a sépia de um regime dito “democrático” mas gritantemente autoritário, com traços crescentes de uma pulsão neofascista, um regime corrupto, ilegítimo, esgotado, a exigir aos trabalhadores e aos democratas portugueses a intensificação das lutas em curso e um vigoroso esforço de saneamento político e moral do país, uma acção de ruptura revolucionária com o actual "situacionismo" e pela recuperação dos luminosos caminhos abertos em 25 de Abril de 1974.

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