SÓ NÃO SE ENGANA QUEM CEDE AO MEDO DE CAMINHAR NO DESCONHECIDO - SÓ SE PERDE AQUELE QUE NÃO ESTÁ SEGURO DO RUMO QUE ESCOLHEU.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Marx e o debate político-ideológico hoje em curso (I)



Há já algum tempo, aqui ficou enunciada a necessidade de tratar um aspecto particular do confronto ideológico que actualmente se trava e que opõe, nas designações utilizadas pelos contendores, espontaneismo e voluntarismo. Trata-se de um confronto de ideias sobre a acção política que, como sempre ocorre quando se recorre à simplificação do uso dos "ismos", não exprime toda a luta de concepções que se vem travando. Presentemente este debate tem relevância, sendo observável tanto na "velha" Europa quanto na "nova" América, pois espelha bem as diversas interpretações sobre as realidades objectivas em cada país. No Brasil, o embate está muito vivo, também pela circunstância de estarem convocados os congressos e conferências de vários partidos.
Antes, porém, é necessário tratarmos uma questão prévia, a saber, o uso das citações clássicas do marxismo no debate, seu carácter legítimo e ilegítimo. O pensamento e ensinamentos dos nossos clássicos - refiro-me a Marx, Engels e Lénine - são absolutamente indispensáveis na luta que os comunistas travam para a construção do socialismo e do comunismo. Assim sendo, citá-los no debate das ideias é-nos legítimo, como recurso argumentativo. Entretanto, este recurso exige que recorramos a ele observando uma condição essencial: não desvirtuar nem mistificar o pensamento e as ideias dos criadores do marxismo-leninismo. Considero que é um dever intelectual e moral de todos aqueles que pretendam discutir o património teórico marxista, por maioria de razões um dever político para todos os comunistas.
No texto e transcrições que vamos utilizar nesta primeira parte do post, pretende-se analisar uma "muleta" teórica hoje frequentemente esgrimida - na minha opinião, errada e ilegitimamente - pelos que defendem posições espontaneístas. Trata-se de uma conhecida frase, com a qual Marx inicia o seu escrito "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte", cujo significado real desmente aqueles que abusivamente a usam:

"Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam directamente, legadas e transmitidas pelo passado."

Datado de Março de 1852, o “18 de Brumário” é um brilhante exercício de interpretação política dos conturbados acontecimentos vividos pela França, nesse período das revoluções proletário-burguesas da Europa, na viragem da primeira para a segunda metade do século XIX. Uma análise crítica certeira, centrada nos comportamentos e escolhas dos seus principais protagonistas - classes, partidos, personalidades dirigentes, orgãos do Estado - interpretando criticamente a tendência dos homens para, na sua actividade política, usarem as máscaras míticas e heróicas das gerações passadas. Neste escrito, Marx exorta-os exactamente a caminhar pelos seus próprios pés, a desembaraçarem-se das subjectivas amarras ao passado; afinal, a transformar o real dado com as suas próprias novas ideias e novas convicções políticas, assegurando-lhes que só assim poderão progredir até novos estádios do desenvolvimento humano.
Para elucidar o verdadeiro significado daquela frase, nada melhor que recorrermos ao próprio Marx, prosseguindo com a sua leitura. Imediatamente a seguir à clássica fórmula, após um ponto final e continuando o seu mesmo primeiro parágrafo, escreve ele:
"A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de se apresentarem nessa linguagem emprestada.”

Entretanto, talvez o sentido e significado mais profundos e óbvios daquela frase inicial de Marx - num escrito todo ele claramente virado à análise dos factores subjectivos da luta e não dos seus factores objectivos - estejam afirmados naquilo que ele escreve algumas linhas adiante:
"A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos."

E, objectivando o que entende que deve ser o papel a desempenhar pelo proletariado, fazendo sobre esse papel uma avaliação agudamente crítica - aliás, em consonância com a linha geral do seu raciocínio -, mais à frente afirma:

"Por outro lado, as revoluções proletárias, como as do século XIX, criticam-se constantemente a si próprias, interrompem continuamente o seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar o seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objectivos, até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam: 'Hic Rhodus, hic salta!' " (1)

Evidentemente, a leitura integral deste escrito clássico de Marx é indispensável. As citações foram longas (peço a vossa tolerância), mas entendi-as necessárias e úteis para tentar demonstrar como é erróneo – e entre nós, politicamente, abusivo -, procurar colocar na boca de Marx, citando-o, aquilo que manifestamente ele não disse, nem tão pouco a sua leitura integral nos autoriza a deduzir. Como se tivesse dito algo do género: os homens - no caso, os comunistas - devem aguardar passivamente que as condições políticas surjam espontaneamente do desenvolvimento material das sociedades humanas, rejeitando analisá-las nas suas dinâmicas concretas e à luz da sua própria experiência, conhecimentos e estudo.
Isto é, como se Marx lhes propusesse que desistissem do exercício da sua própria análise, da sua vontade e razão próprias, abandonando o seu direito e o seu dever de apontar aos trabalhadores, aos explorados, qual deva ser o seu próprio caminho, deixando-os entregues ao espontaneísmo das suas acções de protesto, da reivindicação económico-sindical, de atitudes de revolta pontuais e inconsequentes. Numa palavra, desistindo da revolução.

Toda a obra científica de Marx afirma o primado do objectivo sobre o subjectivo, apontando-nos constantemente que é o ser material que determina a consciência e não o inverso, tornando indispensável o estudo concreto do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção na sociedade. Mas, simultaneamente, o seu pensamento é um permanente e exaltante apelo à interpretação e à transformação das condições objectivas, pela reflexão e pela acção revolucionária dos homens e das classes. Já na sua época, ele defendeu com veemência que a tarefa prioritária dos comunistas, mais (e depois) que interpretar o mundo, consiste em transformá-lo. Sabendo nós que este caminho é árduo e longo, a única atitude certa é pôr-mo-nos desde já a caminho. E assegurando previamente o rumo certo da caminhada.
Uma vez esclarecido o que considero ser o sentido real daquela máxima de Marx, deixemos então para um texto seguinte a análise ao debate actualmente em curso, entre espontaneismo e voluntarismo, um debate limitado e que afinal mascara e ilude posições e objectivos políticos bem mais vastos.

(1) N. do T.: Originalmente, a expressão era “Hic Rhodus, hic saltus!” e aparecia na fábula Viajante Fanfarrão (também conhecida como Atleta Fanfarrão), de Esopo. Nela, um atleta que era muito criticado pelo seu desempenho físico viaja para Rodes e, no retorno, diz que fez o maior salto já visto e que tinha testemunhas lá para provar. Então, um de seus interlocutores responde-lhe para ele imaginar que estava em Rodes e fazer o salto, dizendo para o atleta: “Hic Rhodus, hic saltus!”.

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